sexta-feira, 9 de novembro de 2018

A conta antiga: Tampa de Bruaca

    Os detalhes já estão perdidos, apagados do tempo. Talvez se apagaram depois de a arroba passar a ser de quinze quilos e não mais de dezesseis. Pode ter caído em desuso depois de a bruaca deixar de ser a caixa acondicionante e de transporte de mercadorias em lombo de tropas (de animais de cargas). Quem relata sobre esta fórmula de cálculo pouco sabem para que servia. Sr. Queno se lembrava dela, mas não sabia os pormenores. Sr. Nane, sujeito muito astuto nos cálculos aritméticos, não só os aprendidos, mas também os criados intuitivamente (isso merecia uma dissertação à parte), se lembra que na conta chamada Tampa de Bruaca havia uma multiplicação por 625.
     Pensando um pouco, dada uma quantidade em quilos, para se transformar em arrobas hoje se divide por quinze, pois uma arroba são quinze quilos. Naquele tempo uma arroba era uma quantidade de dezesseis quilos. Então, muito provavelmente, em vez de dividir por dezesseis eles multiplicavam por 625, depois multiplicavam por 10000. Isso daria 0,0625, que equivale a 1/16, ou seja um quilo é 1/16 de uma arroba antiga.
     A Tampa de Bruaca, segundo essa visão, nada mais seria do que uma aritmética para transformar determinada quantidade de quilos em arroba (na época em que a arroba era de dezesseis quilos).

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

CREUSA MEIRA CONVIDA RUTINALDO - CORDEL



 Peleja em Cordel realizada em set/2008, entre uma amiga Poetisa cordelista Creusa Meira e eu, há alguns anos.

 
Creusa Meira

Rutinaldo, se achegue
Vem comigo pelejar
Já que somos conterrâneos
Vamos nos apresentar
Somos do interior
Moramos em Salvador
Temos muito o que falar.


Rutinaldo C. 

Então vamos começar
Pondo nossa prosa em dia
E quem ver vai desejar
Ter nascido na Bahia.
Baiano quando conversa
Mesmo sem querer já versa
Pois a terra é de alegria.


Creusa Meira 

Esta terra tem magia
Poesia é tradição
Já tem Creusa, Rutinaldo
Cordelistas de plantão
Nossas praias são tão belas!
O luar brilhando nelas
Mas amamos o sertão.


Rutinaldo C.
.
Eu fiz uma excursão
Para ver cada terreiro
Foi trabalho cansativo
Rodei este mundo inteiro
E são mais de mil e tanto
Só de orixás e santo
Preenchi todo um ficheiro.


Creusa Meira 

Acendi meu candeeiro
Fui andar pela cidade
Era sexta-feira treze
Já não tinha claridade
Escondida atrás da igreja
Resolvi fazer peleja
Para espantar a maldade.


Rutinaldo C.
.
Por amor a amizade
Comadre eu te imploro
Não repita tal façanha
Pois se tu morres eu choro
Correste grande perigo
Saiba que eu sou teu amigo
Morrer junto eu não demoro!


Creusa Meira 

O perigo eu ignoro
Tou na chuva pra molhar
Não corro de tempestade
Pode o sol me esquentar
Mas, uma coisa eu digo
Ao compadre meu amigo
A morte é duro enfrentar.


Rutinaldo C. 
.
É bom nosso prosear
Falando até de morte
Perguntam pela alegria
Se já perdemos o norte,
Avise a qualquer irmão
Que a morte é transição
E Jesus é o passaporte.


Creusa Meira  

Prefiro apostar na sorte
Traçada pelo destino
Deixe a morte pra depois
Você é ainda menino
Falemos de cantoria
Viola na noite fria
Lua no céu nordestino


Rutinaldo C. 
.
Viola em vez de sino
Em vez de frio, o calor
Faremos pois, cantoria
Em vez de lembrar da dor
De alegria aqui se pula
Cantando reisado e chula
E ao mesmo tempo louvor.



Creusa Meira 

Vamos falar do valor
Que há nessa tradição
A cantoria de reis
No presépio, no salão
Eu tenho muita lembrança
Desse tempo de criança
Que vivi lá no sertão



Rutinaldo C. 
.
O reisado é obrigação
E a Santo Reis sou devoto
Desde os nove anos canto
Comércio ou lugar remoto
Tão bom quanto "cantar reis"
É a cachaça do freguês,
Detalhe simples que eu noto.



Creusa Meira  

Cantando reis, tenho foto
vídeos e muitas lembranças
Até hoje ainda canto
De cigana, com crianças
Em Jornada Cultural
Distante da capital
Em cantorias e danças.


Rutinaldo C.
.
Durante minhas andanças
Em nove ternos cantei
Nos batuques da lapinha
Algo sempre admirei
Ver os caboclos baixando
Senhoras rodopiando
No meio do salão chei'.


Creusa Meira  

Da folia, você é rei
Este assunto me agrada
Agora vamos andar
Viajando pela estrada
Falemos onde é que fica
A natureza tão rica
O coração da Chapada.


Rutinaldo C.

A cidade mais falada
É Wagner ou Livramento
Ainda temos Lençóis
Jamais no esquecimento.
A Chapada Diamantina
Quem a ela se destina
Renova seu pensamento.


Creusa Meira 

Dentro de um apartamento
Eu me sinto prisioneira
Queria poder escutar
Barulho da cachoeira
Que cobre a serra com um véu
Qual nuvem branca no céu
Descendo na ribanceira.


Rutinaldo C.
.
Numa vida corriqueira
Eu nem prestava atenção
Mas hoje vejo o Pai Inácio
Ponho a mão no coração
Formação mais grandiosa
Que beleza majestosa
Que tenho no meu Sertão!



Creusa Meira 

Do meu pedaço de chão
Não poderia esquecer
A pequena Dom Basílio
Que me viu nascer, crescer...
Tinha um lindo regato
Lá eu brincava no mato
De balanço e de esconder.


Rutinaldo C. 
.
Pode incrível parecer
Mas 'inda brinco daquilo
Brinquei, brinco, vou brincar
Mesmo idoso em um asilo.
Vamos seguir nossa prosa
Creusa, oh! querida rosa!
Escolha pois, novo estilo.


Creusa Meira 

Para não perder o brilho
Da setilha eu desvencilho
Façamos novo estribilho
Seguindo outra direção
Próximo ao Vale do Capão
Fica uma linda cidade
Que me levará o 'Cumpade'
Nos oito pés a quadrão.


Rutinaldo C. 
.
Só depende da vontade
Questão de prioridade
Vai encontrar facilidade
Pode vir, tem erro não.
Quando ver a sub-estação
Pra quem vai fica à direita
Só seguir a estrada estreita
Nos oito pés a quadrão.


Creusa Meira 

Sua dica está perfeita
A comadre então aceita
Pega a estrada satisfeita
Levantando um poeirão
Manda preparar o capão
Que a visita é exigente
Gosta de um pirão quente
Nos oito pés a quadrão.


Rutinaldo C. 
.
O caldo já está fervente
Bem picante, bem ardente
E já estou impaciente
Para mexer o pirão.
Diz-me a educação
Que devo aguentar a fome
Sozinho que não se come
Nos oito pés a quadrão.


Creusa Meira 

Sinto doer o abdome
Ansiedade me consome
Creusa Meira é o meu nome
Preciso de proteção
Vou pedir a São João
Faça chegar esse dia
De banquete e alegria
Nos oito pés a quadrão


Rutinaldo C.  
.
Se eu pudesse faria
Chegar logo essa folia
Que tanto te agracia
Este tempo do balão.
Mas deixe a consumição
Vamos viver cada instante
Aproveitando o bastante
Nos oito pés do quadrão.


Creusa Meira 

Vamos seguir adiante
Passando pelo mirante
Uma vista deslumbrante
Dessa linda região
Causa grande excitação
Ver o Pico do Barbado
A Serra do Esbarrancado
Nos oito pés a quadrão.


Rutinaldo C. 
.
Verás o alto Cerrado
Campos limpos feito Prado
E onde estiver acampado
Procure adentrar o capão.
Solte sua respiração
Sinta o cheiro que ele exala,
Mais puro ar não se inala
Nos oito pés a quadrão.


Creusa Meira 

Amigo, você pediu
Vou atender seu pedido
Nossa peleja seguiu
De modo bem divertido
O tema não vai mudar
A Livramento chegar
Podemos continuar
No oitavão rebatido.


Rutinaldo C. 

Estamos nós a brincar
E a coisa ganhou sentido
Se eu quiser descansar
Ouvirá o meu gemido.
Mas se tu estais comigo
Livramento é meu abrigo
Dentro da Chapada eu sigo
No oitavão rebatido.


Creusa Meira  

Podemos ir sem perigo
O pouso é garantido
Estando com meu amigo
A excursão tem sentido
Se tiver comida, traga
Pra cachoeira do Fraga
Rio de Contas nos afaga
No oitavão rebatido.


Rutinaldo C. 

A Comadre já divaga
Mas agora consolido
Comida é idéia vaga
O lugar é bem provido!
Tem cortado de banana,
Doce de cana-caiana,
Boa variedade emana
No oitavão rebatido.


Creusa Meira  

Foi uma idéia insana
De alguém subnutrido
Mas no meio da semana
O fluxo é diminuído
Quando eu por lá morava
No Fraga, eu passeava
Muita fome eu passava
No oitavão rebatido.


Rutinaldo C.  

Saiu-se senhora brava
Com o tempo decorrido
E hoje nada se agrava
São coisas do tempo ido
É nova a alma do canto
Que fragilizou o pranto
E encobriu com novo manto
No oitavão rebatido.


Creusa Meira  

E o seu canto tem encanto
Deixa o povo comovido
Cantando reis, no entanto
Era um menino sabido
Depois do reisado, samba
Parecendo um "nego bamba"
Encantando pra caramba
No oitavão rebatido.


Rutinaldo C. 
.
Da Chapada quem descamba
Anda errante, distraído
Por não caber na muamba
Lembrança do lá vivido
Se já mal cabem as lanternas
Para adentrar cavernas
Roga-se por fortes pernas
No oitavão rebatido.


Creusa Meira 

No caminho, uma parada
Vamos ao Pico das Almas
Deliciando nas calmas
Que a paisagem da Chapada
Ao longe descortinada
Faz-nos perder o sentido
Seu campo todo florido
de orquídeas e bromélias
Flores do Mato e nélias
Nos dez de queixo caído.


Rutinaldo C.  

O fim da tarde assemelha
Um presépio ornamentado
Em tons de um amarelado
Mas logo se avermelha.
Nos lembra o fogo na grelha
O céu multi-colorido
Que basta pra ter valido
A jornada de aventura
Em rumo à arte pura
Nos dez de queixo caído.


Creusa Meira 

Contemplando essa figura
De beleza e encantamento
Vemos surgir Livramento
Que a esse quadro mistura
Sua grandeza fulgura
No canto que eu elucido
Ao som da água no ouvido
O verde cobrindo a terra
Entre as curvas da serra
Nos dez de queixo caído.


Rutinaldo C.  

O olhar que semicerra
Vislumbra o panorama,
Sentido para quem ama
A cultura que se encerra.
Neste mundo não se erra
Se em Wagner foi nascido
O tempo foi preterido
Trazendo mar de instrução
Eis Wagner: um coração
Nos dez de queixo caído.


Creusa Meira 

A nossa grande excursão
Está chegando ao fim
Viagem tão bela assim
Carregada de emoção
Deixa em nós, sensação
De ter o dever cumprido
E o prazer de ter vivido
Pra curtir esse momento
De ver Wagner e Livramento
Nos dez de queixo caído.


Rutinaldo C. 

O nosso agradecimento
Vacila por entre o choro
Fazemos parte do coro
Que soa voz de lamento.
Mas há um contentamento
Centelha na qual trepido:
Tomará o seu partido,
Guiada pela tua sina,
Pra Chapada Diamantina
Nos dez de queixo caído.


domingo, 15 de abril de 2018

Um Causo de Aventura


ORELHA DE ONÇA

I
Podemos até exagerar, mas a verdade será prestigiada e seremos fiéis em nossa onisciência, até porque nosso intuito é somente contar, sem adultérios, os sucessos do acampamento em plena noite sem luar na baixada do Capão, com direito a luz de candeeiro, pandeiro e cavaquinho.
O Capão fica em um vale onde brota e desce um córrego em direção à Lapinha. A mata ciliar é densa, e, por isso, os bichos mais silvestres e escorraçados habitam aqueles locais, refugiando-se do Cerrado limpo, do desmatamento e do homem.
 Naquela madrugada cantava um urutau, cantar fúnebre! Poucos são os corajosos capazes de pernoitar naquele lugar. A lenha ameaçava a se acabar, mas não tardaria o sol a aparecer.
Vale a pena narrar logo de início três momentos emocionantes segundo a concepção de Gute, dos quais, dois ocorridos já às altas horas da madrugada:
O primeiro foi a chegada ao local do acampamento depois de deliberação e decisão a respeito do melhor lugar para esse fim. Ao livrarem-se do peso das cargas — colchões, suprimentos, espingardas, dentre outros —, tome cortar paus, cavar, procurar cipós; um empenho, só se vendo: faziam a coisa com gosto e entusiasmo. Era por volta de uma hora da tarde.
O segundo momento marcante foi quando por volta das duas da madrugada algo se aproximava enquanto dormiam. Tonhão foi o primeiro a acordar e perceber motivo. Do fogo restavam as brasas e a escuridão dominava o ambiente. Em breve, quatro cabras aguardavam a caça com espingardas em punho. Seria ela, a famosa, a temível? A decisão foi acordar o cachorro.
Ela, a onça, é conhecida como o terror das selvas. Sua ferocidade e agilidade a tornam muito versátil: além de trepar árvores altas pode saltar à grande altura. Sagaz, caça na espreita os outros bichos e não raro ataca o gado de criação. A dona menina, assim chamada, dificilmente ataca o homem, salvo o caso em que se sinta ameaçada, como exemplo ter seu habitat invadido — caso em questão —, onde se torna muito perigosa, vindo morrer aos pés do caçador. Toda essa explanação enciclopédica serve para enfatizar que com a gata não se deve brincar.
O terceiro episódio é parecido com o citado acima, porém a certeza era maior: a bichana ao se aproximar do barraco foi assustada pelo cachorro, e Téo podia vê-la em cima duma árvore. Escondia-se por detrás de uma casa de cupim, mostrando somente a cara arredondada com as orelhas curtas. A árvore alta e pouca potência nas lanternas deixavam incertezas: o bicho permanecia imóvel, não se mexia para nada! Mas Téo, conhecedor desses assuntos, garantia:
 — Se ali não for ela..., não sei não!
O mais importante naquele acampamento insólito, porém, não era a caça em si. Se estavam com espingardas era somente porque não se vai ao mato sem ela. O intuito era o desafio de pernoitar ao relento, ao léu em um lugar temível pelo acesso e pela distância. Esse era o escopo que os quatro tinham em mente. Queriam mesmo era divertirem-se todos.
Quatro jovens, se bem Tonhão já houvesse alcançado a casa dos cinquenta, a vida preservando-lhe a juventude e, também, um pouco excesso de barriga. Um cara de corpo roliço, forte e alto, sem agilidade para movimento, mas capaz de andar vários quilômetros diários. Do caminheiro só não se podia esperar grandes saltos, e sua marcha, comparada à dos outros rapazes no alto da vivacidade, era lenta. Mas quem ali senão ele, Tonhão,  o cabra de melhor preparo físico? Sujeito capaz de ir e voltar duas vezes ao dia do acampamento dos sem-terra, que fica além do Pé-de-Serra, o sol e as ladeiras sendo-lhe adversários ferrenhos. Enquanto que outros se mofam nos bancos dos jardins de Wagner, à espera de um transporte, uma carona para Cachoeirinha, Tonhão põe-se na estrada em sua marcha e quando percebe os treze mil metros a separar os dois centros já ficaram para trás.
Todos esses detalhes a respeito das disposições físicas do camarada, contudo, não nos interessam. Vamos contar os casos do acampamento, da estadia no mato. Apenas gostaríamos que o amigo não fosse visto como, dentre os quatro, o menos ativo. Quem foi o primeiro a se assustar e escutar a mexida nas folhagens próximas? E quanto a seus dotes de animador! Pagodeiro sem rival: no pagode de viola é chamado Tião Carreiro em homenagem ao próprio. Soubesse aranhar uma violinha e seria sucesso!
Téo de nada disso sabia, mas não se impressionava ao conhecer Tonhão: o cara não se deslumbra com qualquer coisa.
Quanto a este, vindo de Wagner especialmente para acampar, pode se dizer que se destacou como cozinheiro. Sujeito de baixa estatura, dentro do peso, forte, troncudo, parecendo um índio até na cor, sendo, porém, um pouco mais claro. Ser de princípios bem definido, muito obsequioso e de grande capacidade de renúncia. Este é o Téo. Dos cinco cafés e dois chás saídos em menos de vinte e quatro horas somente dois não saíram de suas mãos. Sem contar as "paneladas" de arroz, peixe assado, carnes e tripas de porco. Interessante, o pano de apanhar e levar panelas quentes ao fogo não era uma flanela, mas sim um alicate, ali para qualquer eventualidade e que fez tremendo sucesso.
Somente isso de Téo? Não. Dos cinco presentes, cinco sim, pois havemos de incluir o cachorro, era o cozinheiro quem mais vontade tinha de caçar, fazer umas batidas, dá uma volta na redondeza. Extremamente lamentável contar, mas o cachorro não estava muito para caça, parecia meio abestalhado: numa grota onde se vacilar tropeça-se nas caças, o cão acuou dois buracos vazios.
Parece ter sido Téo quem mais dormiu naquela noite. Também havia acordado muito cedo e pedalado em sua bicicleta para chegar a Cachoeirinha. Gute, vergonhosamente, havia acabado de acordar — via-se claramente em seus olhos inchados — quando o aventureiro madrugador chegou.
Outro aventureiro é Berro, componente animador do grupo, responsável pelo pandeiro e pela euforia geral. Seu físico: parecido com o de Téo, porém mais alto, e moreno tendendo a negro; irmão legítimo de Gute, se bem que para a história não interessa a distinção ou não de consanguinidade: estavam todos em plena camaradagem, irmãos todos por assim dizer, apesar de Tonhão e Téo conhecerem um ao outro há apenas poucos minutos.
Enquanto Téo e Gute dormiam no descanso da labuta, os outros dois, incansáveis, puxavam pagodes de viola, repentes, serestas, bregas e outros estilos como chula e reisado. O som ecoava no ermo. Às vezes Gute pensava: "será o que é que os bichos estão achando de tudo isso?" Berro   também tocava cavaquinho, mas seu forte era o vocal, cantando de primeira e de segunda.
Gute, o magrelo alto, além de chefiar o bando, era de presença instrutiva. Seu primeiro passo ao chegar ao local do acampamento? Fazer um fogo objetivando um café. Segundo passo foi armar uma rede conectada com cipós. Perfeito! Mais tarde ela cairia consigo.


II

Graças a Gute Téo foi pego de surpresa na véspera por um telefonema e abdicando de outros afazeres, de compromissos sérios assumidos, deixou a cidade. Quem Gute pensa que é, ligando já assim de supetão, em cima da hora? Pensava. Soube, contudo, priorizar a missão. Acontece, seu Téo, que o dia exato não podia ser marcado com muita antecedência. Necessitava-se, para tanto, sair-se fora, ao quintal, olhar o céu: qualquer prenúncio de chuva ou manifestação de trovoada seria suficiente para adiarem a ida. Mas, uma vez decidido o dia, que era vinte de janeiros, chegou cedo em Cachoeirinha conforme Gute lhe havia sugestionado: chegar cedo para descansar um bocadinho, porque quem vai de Wagner a Cachoeirinha de bicicleta anda mais empurrando-a do que montado e as ladeiras parecem não terem fim.
Depois de muita arrumação consideravam-se prontos para a caminhada. Estava marcado para saírem impreterivelmente às nove horas, para evitarem o sol alto, e mesmo tendo Tonhão esquecido de embalar e por na sacola o filé da mistura, ainda tendo este voltado em sua casa para apanhá-lo, conseguiram sair no horário previsto. Despediam do pessoal e todos pediam tomassem cuidado:
— Se virem jeito de chuva, vocês correm para a casa. Berro   sabe lá onde é. — Disse o velho apelidado de Ô, simplesmente Ô.
Berro   não tinha a mínima ideia de onde ficava tal casa ou de que direção tomar se realmente viesse a precisar correr da chuva.
Tonhão entusiasmado, com as sacolas nas costas, pedia a aprovação do grupo para a designação da empresa e de seus empreiteiros: CABRAS DOIDOS DO SERTÃO. Gute corrige para "da Chapada" em vez de "do Sertão". Muito haveria de acontecer, contudo, e a sucessão dos acontecimentos daria um nome bem ajustado à tarefa, melhor não precipitarem-se. Como se viu depois, o nome ORELHA DE ONÇA para o acampamento foi o que melhor se enquadrou.
Tinham os cabras tempo para tudo: De Cachoeirinha à Lapinha é exatamente uma hora de caminhada, apesar de não haver pressa nenhuma em chegar. Da Lapinha ao destino final, ao Capão, também em torno de uma hora, devido ao íngreme relevo e às trilhas mal conservadas. Mais da metade da primeira etapa vencida, Gute com um piquete no ombro e neste a alça da sacola enfiada, sentia doer seu ombro. Uma maneira simples de eliminar peso foi devorar umas bananas. Estava na hora! Útil além de tudo, pois o caminho escarpado a esperar-lhes exigia muito potássio nas panturrilhas. Aproveitando, enquanto comiam descansavam. Tonhão ficou em pé, encostado num mourão de cancela. Gute contou, para admiração do grupo, ter visto há certo tempo uma cobra criada mesmo ali atravessando a estrada, tendo que se desviar com sua bicicleta num malabarismo improvisado para não passar por cima da sujeita.
Satisfeitos, casos contados, seguiram em frente.
Apontavam numa cumeada e a deslumbrante vista panorâmica dizia o quanto ainda tinham que percorrer. Contemplavam a beleza da paisagem acidentada, sem igual na Chapada Diamantina, acompanhada do fundo musical do piado do zabelê. Para Gute isso era nostálgico. O zabelê, conhecido na literatura também como jaó, ainda cantava como outrora. Mas o fato é que a espécie vinha diminuindo aceleradamente, com tendência à extinção, tendo, é claro, o homem como o único responsável.
Já na Lapinha, ao se aproximarem da casa-de-farinha sentiram de imediato o cheiro da jaca. Esta estava dentro da casa, em cima do forno de passar massa. É assim que funciona: tiram as jacas do pé, ainda verde, mas já com pancadas fofas, e as põem dentro de casa, senão a peonada não as deixa no pé, parecendo até que a estrada legítima se desvia passando por aquele lugar. Essa turma costuma não dá vacilos; faz, às vezes, por pura malandragem.
A jaca mole de longe cheirava, atiçando os vermes da barriga e mantendo de birra uma jumenta ali rebeirando a jaqueira que irrompia no terreiro da casa. Essa jega, aliás, muito insistiu para participar da roda dos cabras que circundavam a fruta, sendo necessário, de quando em quando, darem-lhe um pedaço da casca para aplacá-la. Os titulares, com um graveto buscavam os favos amarelos como o ouro e doces como o mel, tão doces de arderem na boca; cuspiam em seguida o caroço numa fungueira infernal do cansaço.
Ainda na roça — casa, sombra e água fresca —, Berro   teve a ideia formidável de atirar em tábuas. Muito correto, uma vez que três espingardas precisavam ter seus carregos renovados. A de Gute, por exemplo, foi testada três vezes e a espoleta não detonou, bastando substituí-la para se ouvir-se o estampido. Com a tábua a oito braças atiraram Berro, o mais afoito, depois Léu e, por fim, Tonhão. Quem muito acertou, meteu dois caroços de chumbo chorados na madeira. A espingarda de Téo ainda embutiu dois tiros e quando isso acorre normalmente se perde o tiro, não acerta a mira, e desta vez não seria diferente. A arma de Tonhão é uma cartucheira calibre trinta e seis e com ela atingiu o alvo. O mesmo fez Berro   com a sua cano-fino: espingarda doce, antes de o dedo tocar no gatilho o feixe já a dispara.
A espingarda de Gute é uma socadeira das antigas, inveja em toda a redondeza, a mais famosa na região. Seria puro egoísmo da parte de seu dono disputar com seus amigos com o alvo àquela distância, e, por isso, provido do senso de humildade, distanciou o alvo para muito mais além, mais do que o dobro da distância a qual se encontrava antes. Téo chegou a murmurar algo do tipo "para onde está indo aquele atoleimado", apesar de conhecer amiúde a história daquele cano. Não foi nada! O atirador da vez arrastou o dedo e, a verdade seja dita, puxou a cara para o lado temendo que alguma fagulha saísse pela culatra, pelo "vido". Os cabras viram e foi até vergonhoso. Tonhão e Téo sequer podiam imaginar o ato. Então era esse o caçador de muitas caçadas, o experiente que tem até medo de atirar? No clube dos grandes homens, matutos selvagens, caçadores por excelência e atiradores traquejados na coisa Gute não se enquadrava. Não depois dessa. Gute, cuja fidelidade às suas raízes era tão consolidada, vacilava numa demonstração de medo. Medo tolo, como disse Téo. Berro   fazia gozação, mas compreendia e até achava correto: antes prevenir do que remediar, dizia. Gute, arraigado em suas convicções e teimoso feito um burro, não se empenhava em se defender. Mas deixar a cara ao risco em um tiro à toa com esse tipo de espingarda, ele mesmo não. Gostava de seu rosto, era o que tinha, e não queria vê-lo fragmentado à pólvora. Atirar em caça é diferente, não se pensa duas vezes; quando dá fé o tiro já saiu numa reação súbita, numa agilidade inerente à pessoa: mal se lembra do pinote ou coice que a arma pode dar, ou nem se dá conta quando o mesmo acontece.
Nesta tentativa a espingarda falhou.
—Tá vendo se fosse de frente com a gata? — Disse Gute referindo-se à onça. Duas tentativas mais e..., nada!
— Ai já era! — Profetizou Téo.
Trocada a espoleta, os cabras só observavam, aguardando. Berro   ria do receio bobo de Gute, ao passo que absorvia experiência de vida. Enfim, sem medo, um tiro ensurdecedor. O ouvido do atirador ainda zunia quando lhe trouxeram a tábua para exame e averiguação: cinco furos foram constatados e uma fenda no meio tendia a separá-la em dois pedaços.
Com essa aqui eu durmo até no Tingui! — Exclamou comemorando o feitio.
O Tingui fica muito além do Capão, mais longe de tudo e de todos, portanto. Os planos para um próximo acampamento era justamente desafiar aquele lugar. O Rio do Tingui já se constituiria numa vantagem se comparado ao Capão, onde trechos do córrego ora tem água, ora só tem lama ou nem isso se a nascente ficou mais abaixo.
Se até da espingarda já falamos, devemos lembrar agora do cachorro, porque, embora não tenha sido o protagonista, nele residia a mais digna confiança. Seu nome é Tá-Riscado, nome engraçado, consequência do fato de ter estado em risco de morte quando ainda novinho. Agora, gordo e sem caçar, agonizava no calor. Vira-lata grande e bonito, só lhe faltou a vocação para caçada: se achasse acuava. Acuava também sem achar, como ficou por mais de uma vez provado. Na volta para casa, na tentativa de redimir-se da má fama recém adquirida, achou um filhote de teiú — ou teju, como preferir —, e foi somente. Estivera, há alguns meses, fino como um bodoque. Contavam-se os ossos da costela e bambeava ao caminhar. Não se sabia a causa de tanta desgraça com o pobre coitado, mas culpavam a olho gordo e mau olhado de gente interesseira. Nem mesmo o óleo-de-pau, o da copaíba, que faz morrer ou melhorar um infeliz, dera jeito. O milagre viera com uma injeção comprada e o bicho agora cheio de banha caminhava escondendo-se à sombra, por vezes arrancando o chinelo de um ou pisando no calcanhar do dono. Aconteceu de um sujeito de nome Luciano, boa gente, programado para ir com os aventureiros, e que levaria uma verdadeira matilha para caçar com o cachorro de Berro   viajar na véspera, desfalcando a equipe. Devido a esse imprevisto Tá-Riscado caçou sozinho naquele mato estranho.



III


Beirava onze horas da manhã quando deixaram a casa-de-farinha, a velha cas' farinha. Era subida dai até a vertente da baixada de destino e o peso acrescentado da água distribuído em garrafas plásticas os fazia penarem no trajeto. Era Gute quem ia à frente e quem decidia quando descansar. A cada parada um sacrifício para Tonhão tanto para arriar a carga quanto para elevá-las às costas. Seguiram vereda acima, deixaram a cerca e trilharam pela picada. No meio da ladeira existia uma parte plana, uma espécie de patamar gigante e ouviu-se de Tonhão a proposta, meio que convite, para que ali mesmo montassem o acampamento. Muito ainda faltava para chegarem ao objetivo final, metade da extenuante escalada e os outros três argumentaram o contrário: Ali!? Lugar sem graça, sem beleza e sem perigo!? O cabra prontamente retificou-se, antes mesmo que desconfiassem está ele querendo livrar-se do restante do percurso difícil, pedindo arrego.
— Eu sei lá! Vocês aí é quem sabe. — Disse.
Muito boa a pilhéria.
A festa começava com o cachorro escorraçando, logo na entrada, uma cutia, obrigando os cabras a tomarem posições estratégicas.
Gute ia à frente doido para ver uma caça. Téo logo atrás reclamando das voltas desnecessárias que o caminho fazia. Berro   no encalço e Tonhão um tanto afastado, no enfaro de tanta caminhada, mas bastava fazer silêncio e podia-se ouvir sua marcha. Parecia um soldado: uma sacola gasalhada às costas como se fosse uma mochila e outra na mão. Sem agilidade para envergar-se para defender-se dos garranchos altos, tinha a atenção redobrada, porque também no chão os tocos e cipós podiam ser-lhe traiçoeiros. Andavam em silêncio, cansados e fadigados. Foi quando se ouviu ganidos.
Tá acuado? — Gute indagou a Berro.
—É! — Berro respondeu num fôlego.
Foram lá e estava o cachorro a ir de um canto a outro, de focinho no chão: acuado coisíssima nenhuma. Nas folhagens, pegadas de veado. Azar! Queria tanto que fosse uma caça acuada para um entretenimento! Berro, que é dono de Tá-Riscado, conhecedor de cada latido e gesto seu, prognosticou errado: não distinguiu o ganido do cachorro correndo do gemido que indica está acuado.
Isso é absolutamente normal. Muitas vezes a vontade predomina e vemos a coisa como gostaríamos que realmente fosse, na esperança de que se torne verdade de fato; e era grande o anseio em cavar um bicho. Acua pesteado!
Prosseguiram discorrendo sobre assuntos triviais. Téo se esquivava plausivelmente de uma piada maliciosa, atento às induções do contador. Berro, com um saco volumoso em suas costas, se visto de longe seria dado como um doido, um desmiolado. Gute, graças à colaboração de Téo, teve sua bagagem reduzida e a dispôs de forma a ter suas mãos livres, crucial para se ter uma boa performance com a arma.
Enfim no assentado a descambar para a baixa do Capão. Suscitaram o papo antes deliberativo, mas agora decisivo: qual o melhor lugar para acampar? Uma árvore imensa na vertente era assaz chamativa, lugar limpo e tranquilo; daí para frente via-se somente cambaúba — capim que lembra a tacoara — entrelaçada por carreiros de tatus diversos, de caititus, de quatis, de onça e de outros bichos do lugar. A mata se adensava à medida que da aguada se aproximava. Não pretendiam os cabras, contudo, estabelecerem-se embaixo de uma árvore dominante como aquela em vista, pois poderia tomar-se perigosa em caso de relâmpagos, segundo Gute. Ainda observaram sua fronde, e, por olharem para cima quase perderam a picada, tendo que torar mato no peito para reencontrarem-se com a trilha.
Berro   estava, porém, decidido: o local seria aquele onde um dia fizeram café, perto do lameiro. — Vambora! — Pedia pressa.
O lameiro é a nascente do córrego, onde em dias secos de verão os caititus vão se refrescar. Nesse ano chuvoso, entretanto, o lamaçal em vez de somente lama corria água. Todavia não sabiam, por isso não se pode dizer que foi inútil a água engarrafada que trouxeram da Lapinha, até porque no processo de captação da água do córrego esta se misturava com lama, sem contar que já a caracterizava o gostinho amargo de folhas podres. Assim, para beber, era preferível a água que trouxeram, especialmente a de Tonhão,  vinda de Cachoeirinha, três litros, mineral isenta de qualquer impureza. A água do córrego ficaria, então, para cozinhar e lavar.
A decisão foi, por fim, adentrar o Capão e acampar ali, no sopé da rampa, em conformidade com a pretensão do apressado Berro. Dali se ouvia o barulho do humilde fio d'água. Naquele mesmo local há dois anos dava-se notícias de uma onça e atualmente muitos eram os vestígios: pegadas e excrementos compostos de pelos de quati e de cascos de tatu foram vistos há algumas semanas. Por isso, está ali sabendo que logo mais a noite desceria, dava aos aventureiros aquele ar de adrenalina.
 Chegado ao local exato surge um pequeno problema: só havia rampa; nada era plano. Como dormir em semelhante lugar? Prescindiam, decerto, de qualquer conforto, mas o lugar era terrível! Garrafas rebolavam; um coco-da-baía descascado, ali de suprimento, desceu ladeira abaixo, e por sorte não se perdeu na cambaúba, que é um capim de folhas grossas e cortantes, cano grosso que quando quebrado corta que nem uma navalha se iguala.
Aquele momento imediatamente posterior à chegada Gute o qualificou como o mais emocionante, talvez por ter chegado de uma caminhada infindável. Agora, todos bem dispostos a levantarem um barraco, mesmo rústico, que os abriguem retendo o sereno da noite. A matéria-prima consistia de paus, galhos e ramos. Gute, com uma visão rápida e precisa, concluiu por um rancho beira-chão: exatamente, a parte traseira da cobertura apoiar-se-ia no chão, não abrigando, por esse motivo, ninguém em pé naquele lado. Mas na parte da cumeeira — lembrando que havia somente uma "corrida d'água"— era alto o suficiente, ainda mais devido à inclinação do terreno, que nesse caso, e somente neste caso, diga-se de passagem, trabalhara a favor.
Em meio a tantos improviso e privações, que fique claro de uma vez por todas que: se há alguém incapaz de imaginar e sentir o cheiro dos arbustos, cavacos e folhas em apodrecimento; que tenha pavor a formigas, lacraias, cobras, pernilongos e escorpiões, que não leve a história adiante, porque não haverá gosto nenhum. Ao demais, não lamente pelo pano de cozinha, ou pela água de má qualidade que beberam no segundo dia. O importante, e isso já foi esclarecido mesmo entre os membros da equipe, não era a caça ou caçada. Naturalmente que se surgisse uma carnezinha seria bem vinda. Não eram, no entanto, caçadores ali. Queriam sim a aventura, o prazer de se está fazendo algo extraordinário; e melhor que isso, melhor que aquele acampamento, semente um outro mais demorado, com mais perigo, com cintilações no céu ou chuva de invernada. Não lamente, porque em nenhum momento os bravos o fizeram. O que poderia de fato dá errado? Um pé d'água inesperado numa desventura apagar suas fogueiras; uma serpente venenosa à meia noite picar o cachorro, o guarda noturno? Bem, se a gente for pessimista e pensar em tudo que eventualmente pode sair-se em desconformidade a gente não sai de casa. Não é verdade?
De início Gute argumentou contra a ideia de levantar um abrigo em terreno tão desajeitado para se repousar. Não recordava, contudo, nenhuma clareira apropriada nas proximidades, não apresentando, desta forma, qualquer alternativa. Ainda, dois paus naturalmente fincados pareciam simplificar o trabalho, duas forquilhas ideais. Três contra um na decisão, ou melhor, quatro: porque o cachorro curiosamente já havia cavado as folhas e, depois de ter dado uma volta e meia, deitado, via-se logo ter adotado o lugar. Restava ao Gute aderir-se ao grupo.
Ficou um barraco bom, embora meio troncho. Via-se na expressão de Téo, que suava incessantemente. Para ele, uma pena não ter sido empregada palha de coqueiro. Fosse em sua terra, um lugar de nome Rodeador, situado além de Wagner, próximo ao Arrecife, antigo Gambá, este último já em município de Lajedinho, palha não faltaria, porque coco licuri lá é a vegetação natural. Mas mesmo sem a contribuição das palhas de coqueiro a cobertura podia, mesmo de ramos e galhos, reter chuvisco. Vedado o fundo e o oitão do lado norte, Gute pronunciou e obteve apoio: não seria necessário fechar o segundo lado, sendo imprescindível à noite uma fogueira também naquele lado.
Havia desde o início um fogo à frente de onde das mãos de Gute saiu o primeiro café. Uma tora encontrada na beira do córrego foi posta à beira do fogo de forma a evitar que a terra deslizante encobrisse as brasas. Uma casa de cupim foi cortada e trazida para apoio da panela: na ausência de uma pedra, esta foi a trempe.
Enquanto trabalhavam, Gute, revivendo os bons tempos de traquina e sem juízo, subiu em uma árvore, mostrando sua agilidade. Esta estripulia fazia parte da diversão. Lá estava ele, esbelto e torto feito um macaco escanchado no tronco do murici.
A essa altura a araponga, pássaro misterioso, enfeitava a tarde com seu piado que lembra tinido de marteladas em metal, mostrando que a solidão tinha lá suas belezas. Sabiás, jurutis e cancãos completavam a festa.
As ferramentas à construção compunham-se de três facões, e um enxadete. Um desses facões foi achado naquela manhã na Lapinha e seu proprietário ainda era desconhecido. Certamente gente esperando paca o havia perdido. Muito amolado, Gute era quem o manejava. Este amarrava cipós para fixar os caibros. Estava sério, mas ria-se por dentro.
E foi assim que o barraco se ergueu. Tonhão,  acostumado na lida com sem-terra, era exímio nesse tipo de improviso, dava entender que sabia. Se seu facão era vergonhosamente cego, ruim de corte, devia-se somente à ausência de uma pedra-de-amolar. Outrora o sujeito seria desqualificado por isso.
 Depois de pronto o rancho pesava na consciência o fato de terem que desmanchá-lo no dia seguinte, o que se faria bastando cortar os cipós. Tonhão cogitou deixar em pé a construção rude, porém em terreno alheio, constitucionalmente inviolável, não seria correto. Gute foi decididamente contrário à ideia, pois podia abrigar caçadores e não era essa a intenção. Aliás, só o fato de estarem ali já podia dá o que falar na boca dos leva-e-traz e dos bajuladores que metem a faca e deturpam a imagem dos propósitos alheios. Passasse um infeliz e reparasse em tão belo barraco, notasse animação tamanha; em seu entorno um sujeito alto e forte gesticulando como a dar instruções, reconheceria no cujo, Tonhão,  um líder nato, aquele que organizou os Sem-Terra do Pé-de-Serra, sem dúvida futuro vereador em Cachoeirinha e lídimo representante; isso seria o bastante para o invejoso botar a boca no mundo, anunciando invasão do Capão, pelos sem-terra, aumentando de quatro elementos e um cachorro, para uma cambada de quatrocentas famílias. Por essas e outras, melhor mesmo seria destruir a casinhola e qualquer feitio. Deixasse qualquer "filho-da-puta" vir a fofocar, fazer intrigas e ser descoberto.


IV


Já arranchado, Gute saiu ara investigar o ambiente. Precavido, deixa uma picada por onde passa. Poderia, quem sabe, ser aquele o percurso da noite para quando estava marcada uma excursão rampa acima pelos fundos do abrigo. Demarcava com corte nos paus, lavrando sua casca deixando uma cicatriz. Em certo ponto, notando que já estava suficientemente longe, já a descambar de volta rumo à Lapinha, para e assobia. O sol brilhava, mas a mata era fresca. Ouvia-se ao longe roncos de motor de carro meio que perdido no ar. Ou seria uma mamangaba ali de passagem? Remedou uma zabelê e ouviu responder não tão distante um cantado fino, trêmulo e descompassado. Só podia ser Téo, que, entrementes, pegara o carreiro de voltar para casa, empenhado ele também numa sondagem nas adjacências. Agora, algo azul no meio das folhagens chama a atenção. De perto, um boné em mau estado. Fura uma casa de cupim, esculpindo olhos, boca e nariz. Na boca deixa um garrancho espetado, e com o boné estava formado o boneco de charuto na boca. Notava a partir daí ter entroncado numa trilha de caçador profissional, encontrando também a explicação para tal chapéu. O zabelê fanho de cantado trêmulo começava a se afastar: realmente as duas veredas não se cruzavam. Mais um golpe para demarcação do carreiro, mas dessa vez ouve um chiado grosso e fica abestalhado enquanto não interpreta aquilo. Ao levantar as vistas dá conta de uma casa de maribondos pretos, que enfezados pelo golpe em seu galho, desentocam-se com asas vibrantes fazendo uma zoada de cachoeira, e alguns já voando em derredor. De súbito susteve a operação. "Onde eu ia me metendo?", pensou, ciente de que bastava uma ferroada para causar-lhe febre e dor de cabeça, sem contar a dor e o inchaço no local da picada. Sendo no rosto, então, o sujeito fica até engraçado, com um olho miúdo como quem está fazendo mira, ou um beiço grande, rindo à toa; e os amigos não deixam passar, matam na gozação. Reparou bem o lugar para evitar deparar-se com esses bichinhos à noite. Reparou também uma árvore grande que podia servir de referência mais tarde, quando à noite saíssem para um entretenimento. Malandro, começou de longe a arremessar paus na colmeia, que de aspecto cinza, escurecia. Andou um pouco mais e Tá-Riscado acuou um buraco. Escutou se algo cavava: quieto! Deve está fundo, concluiu. Teve o trabalho de cortar um pau, elaborar uma cunha e por o cabo no enxadete para depois de algumas enxadadas topar com o fim do buraco, vazio, diga-se de passagem. Ensaiou alguns passos de volta. O cachorro já sabendo o caminho antecipava o pensamento do aventureiro e, saliente, saía no trote. Nem motivo de uma caça sequer: nem um tatu, jacu, ou aracuã. Quando caísse a noite ele voltaria ali e daria o troco: era questão de defasagem de horário, pensava.
Quando alcançou os outros três, esses já haviam se alimentado, mal, para constar. Téo ofereceu-se por mais de uma vez para preparar outro café caso aquele da lata fosse insuficiente; tinha consciência da vocação de Gute para o consumo do produto. Entretanto não carecia, havia café de sobras. O retardatário comeu e deu uns restos para Tá-Riscado.
Brincaram muito naquela tarde. Téo ainda não satisfeito, de casa pronta, queria ser homem primitivo: tentou fabricar um arco e uma flecha, desistindo bastando o primeiro empecilho. Gute, confortado na rede, numa moral de cachorro magro, mostrava-se fingidamente desinteressado às astúcias do amigo. Tão logo Téo desiste da tarefa primorosa o invejoso a começa, mas o cipó do arco não suporta e se rompe. Declara-se vencido: houvesse embira ali e seria barbada! Téo, agora motivado pela disputa, confeccionou um arco enorme, arcão de primeira, mais alto do que o atirador, inclusive, embora isso não signifique muito, visto não ter o cara essas estaturas absurdas. Com o arco lançava flechas para o lado de baixo da rampa, pois assim teria maior alcance, conhecedor dos princípios físicos da coisa, assim poderia, quem sabe, até impressionar a Berro   e Tonhão,  a essa hora sentados a conversarem. Um milagre Tonhão está sentado, preferia sempre ficar em pé. Gute preparava dois fachos de candeia e chuços para possível emergência. Viu quando Téo acertou uma flechada numa casa de cupim, a flecha ficando espetada no cupinzeiro. Sensacional! Modesto, o primitivo não cobrou dos amigos o reconhecimento do feitio, o re­verenciamento de sua perspicácia.
Assim era Gute e Téo. Amigos desde o ginásio, onde numa disputa saudável encabeçavam suas turmas. Dez anos eram passados, ambos agora acadêmicos na capital, aprendendo a construir para edificar o futuro do mundo. Tinham nesse mês de janeiro uma baita de umas férias, o que justificava qualquer meninice tal como subir em árvores ou construir arcos e flechas. E o barraco? Desde quando quatro homens necessitam de um barraco para passar uma única noite na selva? Dorme-se no meio do relento, alimentando-se à base do deus-dará. Mas os cabras não! Estavam ali por diversão: se algo se tornasse obrigação, e exemplo de ter hora marcada para chegar, comer e dormir — valha-nos Deus do céu, hora pra dormir!? — Gute com certeza ali não estaria. Quanto à choça, só podia ser resultado desse espírito de brincadeira, que habitava desde o mais moço, Berro, ao mais velho, Tonhão.
Naquela tarde de diversão uma atriz linda e famosa na capa de um caderno sorria maravilhosamente para os acampados. O que fazia ali tal objeto? Ora, se baixasse em alguém os dotes literários haveria de ter papel e lápis para consignar a obra, que podia ser uma moda de viola, uma poesia, uma música, uma porfia em cordel, ou sabe-se lá mais o quê. Esse acampamento, aliás, foi marcado com versos — fuleiros, é verdade —, bem intencionados, porém nada realista. Um autor foi Berro, que insatisfeito em somente relatar em rodas de prosa as emoções que sentira na pele, quis compartilhá-las em versos. Assim, meio descompassado, cada estrofe narrava um episódio.

“A fome depois chegou
E fomos cuidar do rango.
Tá-Riscado acuou
No buraco do calango.

"Pouco tempo escureceu
Veio história de terror.
Gute logo adormeceu
Dizendo: pare esse horror."

Gute, se bem houvesse esmorecido, nada de concreto foi manifestado referente às histórias de terror.
Outro que evocou os dotes de poeta foi Tonhão,  que, em suas linhas versificadas escritas também semanas depois, trazia Gute como "o angelical". Anjo da guarda foi o que quis dizer, porque as decisões sempre passavam pelo "anjo", que esbanjava conhecimento de técnicas de segurança e sobrevivência na selva e tudo o mais.
Com os dedos despelados pela labareda e clamando não ter sobrado nenhum pelo nas costas das mãos e dedos, Téo, sentado na rede, arriscou umas notas no cavaquinho. Sucesso!
Tonhão lastimava por não ter trazido seu rádio-a-pilha, o havia deixado no barraco dos Sem-Terra por uma simples falta de planejamento e não se conformava com isso. Já Berro   a todo o momento trazia à memória a necessidade de uma câmera fotográfica, também útil e ausente.
Mas, como diz o poeta, "nasce o sol e não dura mais que um dia", verso sublime do cognominado "Boca do Inferno". Davam conta da veracidade de suas palavras quando os raios tênues, oblíquos e em tons amarelados da tardezinha tocavam somente a copa das árvores mais altas. Jamais um anoitecer havia tido tanta relevância. A passarada, destacando-se sabiás, cantava seus últimos cantos para logo se agasalharem. Era a noite que se aproximava do Capão, com toda a sua força e seus enigmas indecifráveis. A hora esperada: o desafia era justamente a noite, e essa implacavelmente os apanhava. Não se era mais possível desistir caso assim alguém desejasse.


V


Concluída a choça, cedo ainda da tarde, Téo providenciava o rango com improvisos e riscos frente à ausência de uma trempe. A labareda lambia a panela e chamuscava a mão do cozinheiro. O cheiro da cebola frita e queimada atiçava a fome, mas na situação em que se encontrava a caçarola muito os preocupavam: em equilíbrio instável, podia entornar todo o arroz a qualquer momento. Um pedaço de cupinzeiro moldado feito tijolo — a essa altura já não havia mais cupins — não agasalhava bem o recipiente, necessitava, pois, de um negócio, segundo Téo. Referia-se a uma trempe. Para Gute, bastava-se fazer uma cava; e após o cozinheiro retirar a panela preta e enfumaçada por um instante, o outro com o facão ajeitou o fogão, conformando o apoio ao fundo da vasilha, trazendo conforto ao ambiente. Cabra esperto esse Gute, merecedor de todos os encômios, sempre com boas iniciativas. Foi dele também a ideia de utilizar o alicate para manusear as panelas quentes. Fazia tudo naturalmente, não se vangloriava nem desfazia de ninguém. "A coruja é quem gaba o toco", modesto, soltava esse jargão.
Uma coroa de bicicleta, que seria a trempe, foi cogitada para a próxima vez. Gute agora aperfeiçoava o circuito de uma lanterna enquanto o arroz fervia.
Não faltou foi papo: de natural discutiam esporte, sobretudo futebol e automobilismo. Cerimoniosos, ninguém se contrapunha a opinião do amigo. Resguardavam-se em opinar e ouvir, salvo por Tonhão que preferia ter somente seus casos escutados.
Gute, sentado a fazer as iniciais do seu nome — GC — na casca do murici a sustentar o barraco, puxava prosa. Chamava para a discussão a proeza de a cutia cortar com perfeição um coco licuri ao meio. Para Berro, o mais engraçado era um bicho originar-se dentro desse mesmo tipo de coco: como pode se o danado é todo fechadinho? Já Téo, bom entendedor no assunto "coco", perguntava pela rapadura para mastigar com um coco-da-baía que vira rolando por aí. Muito bom é coco com rapadura, dizia, pedindo que experimentassem.
Falar em rapadura é lembrar Pé-de-Serra, lugarejo de tradição na produção do doce, melaços e cachaça. Por aquelas bandas estavam acampados os sem-terra, tendo Tonhão como seu principal representante. Então vinha o cujo agora narrar suas participações em importantes assembleias pertinentes ao meio.
Assim, assunto puxando assunto, o papo fluía e a tarde passava.
Daí, no limiar da noite, já lusco-fusco, trajaram-se para uma volta ao mato: calça, sapatos e blusas. Téo mais uma vez era a personalidade: parecia cantor sertanejo, com calça e blusa de mangas ambas curtas e apertadas. Berro, muito gozador, não deixava de fazer seu comentário hilariante levando todo o grupo às gargalhadas. Em seguida, com enxadete em mãos, Berro   assobiava a Tá-Riscado dando-lhe prestígio. Tonhão o estrumava dando-lhe encorajamento. Lanternas nas capangas, espingardas,... Lá se foram.
Não foram longe e não precisava. Era na beira do córrego que a bicharada morava e ali já estavam os desafiantes da noite. Escureceu completamente, e Téo, cutucado por Berro, queria avançar mais, afastar-se do posto central, do acampamento; e, impaciente por esperarem uma atitude firme de Tá-Riscado, pararam observando a escuridão, a noite a silenciar-se; cada grilo com seu cantado mais exótico. Na baixada sapos coaxavam. Encontravam-se os cabras doidos do Sertão no fim de uma picada quando ouviram latidos.
O cachorro trabalhava firmemente. Com as mãos cavava e com a boca quebrava raízes. Berro   e Téo verificaram, escutaram, repararam..., e nenhum barulho vindo de dentro do buraco. Cavaram com o enxadete. Berro, reclamando da má iluminação, cobrava mais entusiasmo, discretamente, sem ofender; não podia simplesmente tachar ninguém de mole ou de morto. Gute, com cautela, providenciou um fogo para clarear, aquecer e dar segurança ao ambiente. Curioso é que, por deslize, só havia quatro palitos de fósforo ali no momento e somente no último o vento permitiu, "graças a Deus!", que o facho queimasse. Cavavam Berro   e Téo e a suspeita de está o buraco vazio era grande, até porque o cachorro não persistia, ao contrário, deitou afastado. Isso já havia ocorrido à tarde quando Gute volteara a vizinhança e o cachorro começara a cavar um buraco que não prosseguia, numa verdadeira maçada.
Tonhão,  desta vez agachado, era quem segurava a lanterna e focalizava de longe a toca do tatu. Isso até Berro   puxá-la abruptamente de sua mão: necessitava, pois, de mais claridade. E Gute o que estava fazendo que não vinha dar uma demão, ajudar a cavar e jogar a terra cavada? Ficava ali na beira do fogo, parece que estava com frio?! Berro   pensava. Para esse jovem, o momento era de máximo frenesi, mas Gute e Tonhão estavam apáticos, sem reconhecer que aquela era a hora do ápice da excitação.
Gute somente espiava o enxadete jogar a terra.
— Agora foi que deu! Parece que o buraco acabou! — Exclamou Berro, confuso, pedindo a Téo que confirmasse sua conclusão.
— É. `Tava muito estreito também. Chega nem cabia mais a mão. — Disse Téo referindo-se ao buraco ao passo que limpava o suor do rosto com as costas das mãos e verificava o estado de suas unhas.
Téo, que jamais puxara um tatu pelo rabo, via naquela ocasião uma oportunidade ímpar; claro que Berro   entendidos desses protocolos deixaria. Ora se... Seria uma desfeita. Mas..., e se não desse conta do recado? Receava Téo. Isso sim seria bizarro. Desentocá-lo puxando-o pela cauda seria moleza, força não lhe faltava, para isso era renomado em disputas de quebra de braço. Mas, uma vez feito isso, o que fazer para matá-lo? Gute e Berro, experientes, tantas e quantas vezes já fizera a ponto de terem suas mãos calejadas, aguardariam enquanto veria ele, Téo, perdido e sem jeito, querendo livrar-se do bichinho por não saber proceder. E se esse bicho o enfiasse os dentes? Parece ter ouvido certa vez Gute dizer ter o tatu dentes afiadíssimos! Não seria melhor deixar esse por conta de Berro   e o próximo quem sabe? O primeiro é muita responsabilidade, não pode deixar escapulir.
Téo divagava nesses pensamentos quando Berro   anunciou o fim do buraco.
Consumado: fim do buraco mais uma vez, e nada. Indignados, os dois cavadores fizeram um percurso rápido na esperança de que o cachorro acuasse de verdade, Gute e Tonhão permaneceram sentados à beira do fogo mantido a garranchos. Havia muita lenha boa, mas no escuro como saber qual candeia está verde e qual está seca? Ouvia-se Berro   e Téo, enquanto isso, quebrarem paus e gritarem o cachorro. Esses voltaram logo, porém, desiludidos, guiados pela conversação entre os dois da fogueira. Aproveitaram alguns minutos ali juntos, como que com pena de abandonarem a claridade das chamas e substituí-la pela luz fraca das lanternas. Sentiam frustrados pelos insucessos, sem saberem ao certo o que fazer a partir dali. Não esperavam terminarem assim de mãos abanando, num desfecho sem graça para aquele que devia ser o momento de diversão e ânimo. Gute, não se sabe como, tinha certeza de que aquele buraco estava vazio, mas não quis persuadir os colegas uma vez que o entusiasmo era grande. Berro   agora entendia o porquê de sua indiferença.
Cachorro quando se encontra neste estado de extravio o remédio é um defumador. O produto a queimar, no entanto, é segredo de cada um. Mas é certo dizer que o dia da semana apropriado é a sexta-feira. Há quem observa também, para o dia do defumador, as fases da lua, e independente de tudo isso, o alho é peça fundamental. Vale salientar, ainda, que cachorros quando são muito estrumados afobam-se, talvez querendo mostrar serviço, podendo eventualmente, com isso, acuar calangos, caranguejeiras e buracos vazios. Este pode ter sido o caso, visto que situados no fim do caminho, os quatro cabras disputavam assobios ante a noite, como se o cão estivesse a quilômetros de distância, mesmo sabendo está o danado logo ali adiante. Tonhão e Téo ignoravam por completo esse problema — o de atiçar o cachorro além do necessário —, não tinham conhecimento. Mas quem fazia bonito era Gute, que não gostava de ficar atrás, com assobios dominantes inventados ali no momento. Se há um defeito em Gute é querer ser o bom. Por isso esforçava-se, em vão, para conseguir assobiar com dois dedos na boca, especialidade de Téo: assobios estridentes e ensurdecedores. Berro   preferia fazer graça imitando caçadores amigos conhecidos.
O desafio agora era retornar ao abrigo: noite sem lua, mata ora trançada, ora de chão encoberto somente de folhas das árvores altas, e todos neófitos nesse assunto, sem experiência para deslocarem-se orientadamente no mato escuro. Gute sabia que o menor vacilo poderia causar complicações sérias, como entrarem num meio mais fechado, de difícil penetrabilidade, ou até mesmo desorientarem-se todos e jamais encontrarem o barraco. Já não havia fósforo nas suas capangas e fogo somente através de truques. Não seria o fim do mundo obviamente, mas a diversão seria posta em xeque. Téo não estava a par destes pensamentos tenebrosos quando pedia para que avançassem mais. Não lhe vinha à mente recordação de causos, alguns inclusive sobrenaturais, como o de um sujeito que entra na mata para dá um volta à noite, roda meio mundo na tentativa de sair-se à rodagem, não consegue e acampa ao relento, percebendo está a metros do caminho tão logo o dia amanhece. Mas Gute, precavidíssimo como ele só, já havia secretamente em suas artimanhas articulado planos para alcançar a choça mesmo que de olhos vendados, seguindo ou não um carreiro. Parecia ser elementar: o casebre não ficava na nascente do córrego? Então o que tinham de fazer caso fosse necessário era descer em direção à água e a partir daí subir ou descer rente ao córrego conforme encontrasse água ou não. Dessa forma o rego seria a referência. Sujeito manhoso esse Gute, de grande picardia.
Gute guiou o grupo pelo mesmo caminho de ida. Uma estrada, segundo Téo, tamanha era a abertura na floresta. Os cortes feitos nas árvores visando à demarcação da trajetória pareciam brilhar com as lanternas e, deste modo, depararam-se com o rancho. Berro   ficou encabulado: para ele, entretido na conversa, estavam ainda na metade do caminho. Os outros ficaram pasmos também, pois o Gute até para andar no mato escuro e desconhecido tinha vocação.


VI


Téo ressonava. Berro, Tonhão e Gute, este último com o cavaquinho, cantavam. Imitavam vozes e gestos de tocadores de pandeiros dos reisados conhecidos. Uma algazarra! Gute entregou-se e ao cansaço e à sonolência e passou o cavaquinho para Berro, que o usou como instrumento de percussão, por opção, pois mesmo canhoto sabia tirar um som. Como de praxe, este engrossava a voz para cantar e fixava o olhar em algo, à moda a leoa encarando a presa planejando o ataque. Mas com os cabras dormindo Berro   desanimava: não disseram que iriam virar a noite sambando ou cavando um troço? Quem sabe batendo mais forte o pandeiro eles não acordam! Pensava.
Gute assusta-se mais tarde, ao escorregar ladeira abaixo quando tentava se agasalhar. O som das serestas continuava. Téo há pouco havia acordado e já atiçava o fogo. Era por volta das vinte e duas horas, momento propício para outro café — o terceiro — e o jantar. Esqueceram-se, por acaso, que nossos desbravadores ainda não jantaram?
Téo lançou a ideia de, depois da boia, darem uma volta, quem sabe o cachorro dessa vez...
Gute estava tão confortado meio embrulhado, de forma que a ideia de aventurar pelo mato e pelo escuro não lhe agradou muito. Berro   e Téo buscassem compreender — Gute dizia —, mas àquela hora não havia bicho andando. Continuou argumentando, lembrando aos cabras que naquela beira de córrego o mato era muito trançado. Por mais que não precisassem ir longe, era complicado. Será que seriam recompensados por deixarem seu conforto e se arriscarem em beira de córregos, morada das cobras venenosas? Lembrou ainda que matara certa vez uma caranguejeira que não tinha mais tamanho, uma coisa esquisita carregando seu ovo por sob o abdome, com seu ninho instalado em plena trilha do caminho de casa, logo acolá. Lembrou-os também de que um cipó de tiririca cortara seu dedo quando somente o tocou de raspão, ali pertinho da beira do córrego. Quanto tempo devia ter isso mesmo? Um ou dois anos quem sabe. Se durante o dia não é fácil, então à noite nem se fala. Nem tanto pelas caranguejeiras, mesmo com aquele ovo nojento e seu caminhar macabro de dar arrepios, até porque uma vez no mato dessas coisas nem se lembra. Abandonar, no entanto, o fogo e a claridade, somente com aquelas lanternas esmaecidas, enfrentar o mato e o frio... Haveria necessidade? Mas por lembrar necessidade, por que diacho estavam ali sem nenhuma precisão? O melhor mesmo era cair no mato e completar a euforia. Será que Tonhão,  que agorinha mesmo se embrulhara de pé a cabeça, iria topar?
Como se viu, a ideia agradou muito menos a Tonhão,  que ainda não havia descansado; e este ratificava suas intenções embrulhando-se e aquietando-se em seu leito, mostrando está de sua parte o caso encerrado. Não adiantava Téo reiterar a proposta e Berro   argumentar a seu favor. Ah! Berro   topou e defendeu seu ponto de vista veementemente. Afinal, para que estavam no mato? Dizia. Ainda brincaram dizendo que dois iam e que dois ficariam com propósito de garantir a permanência da fogueira. Por fim, transigiram e ninguém foi.
Gute sentia, à essa hora, uma gastura nos dentes, sem os apetrechos de higiene e tendo à tardezinha comido coco com rapadura — combinação perfeita segundo Téo — desejava limpá-los, pois os sentia ásperos. Téo, mais precavido, tinha uma escova na mochila, mas não havia pasta. Inclusive, apesar de terem todos suados desde o início, Téo começando mais cedo ou do dia anterior, ninguém sentia falta do banho. Para que se estar limpo no meio da sujeira?
O cachorro já alimentado, deitaram todos segundo a inclinação do relevo; as armas facilmente acessíveis. Téo tentou mostrar alguma objeção em ser o cabra da ponta, o primeiro da fila, o que dormiria do lado aberto, mas via-se facilmente está ele brincando. Gute mantinha uma lanterna pequena no bolso, a capanga de munição dependurada no teto, tangível bastando, mesmo deitado e de olhos fechados, erguer as mãos. Candeeiro apagado, lanterna, facão e espingarda ficaram à cabeceira da cama. Cara prevenido! Somente correição de formigas o tiraria dali, dizia.
Passava da meia noite, todos dormiam. Não imaginavam a diversão a lhes aguardarem dali até o sol raiar.
De repente Tonhão acorda, ouve e fica a escutar na noite soturna algo mexendo na rampa, beirando a aguada. Independente do que fosse, passaria entre o córrego e o casebre; estes separados por algo em torno de dez braças. Tonhão ficou sentado. O mexido se aproximava. Não havia mais fogo, salvo pelas brasas que já não clareavam mais. Surge a dúvida: "acorda os meninos?" — Para Tonhão os demais eram meninos. O barulho era sutil e em meio ao silêncio da noite não se ouvia outra coisa.
O cachorro dormia profundamente, mas o observador sabia que bastava chamá-lo, como se mesmo adormecido estivesse Tá-Riscado de stand by. Cinco minutos passados e a mexida agora é praticamente em frente ao barraco e estava perto! Sendo o único acordado, Tonhão sentiu-se sozinho naquela brenha em plena madrugada e esse sentimento fê-lo sentir um frio anormal, um arrepio. Seria medo?
Chamou Berro, sendo necessário cutucá-lo, não era hora de falar alto com a onça ali bem em frente a eles.
— Escute só! Cochichou.
Berro   acordou perdido naquele mundo e agarrou-se à espingarda mais próxima, mas não tinha a mínima noção de onde pudesse está o candeeiro e sequer se lembrou de lanternas. Nesse sussurrar Gute acorda e ao passar o braço para apoiar-se e sentar-se acotovela a coronha de uma arma. Pensou rápido. Tão rápido Berro   lhe passou a arma:
— Aqui é a tua, porra! — Disse Berro   baixinho, mas via-se claramente está nervoso.
Gute prendeu a respiração para escutar melhor o motivo nos garranchos próximos e inteirou-se do ocorrido.
É de hoje que eu estou aqui escutando, já tem uns quarenta minutos! — Disse, Tonhão numa afirmação discutível. Tão discutível quanto a afirmação posterior de que a fera lhe teria jogado um punhado de terra.
Téo é acordado e também manuseia sua socadeira.
O segundo momento emocionante do acampamento: quatro cabras de espingardas e lanternas apagadas metidas naquela direção à espera que o tatu — para Gute tal bicho não passava de um simples tatu — metesse o focinho e caísse na esparrela. Mas o danado passava já a essa altura da direção do barraco, longe de qualquer foco, e só lhes restavam instigar o cachorro. Este farejou os rastros, seguiu em ganidos estrondosos, mas voltou logo em seguida para estranheza dos homens. Tá-Riscado acentuava sua falta de prestígio.


VII


A animação recomeçava com o sono agora despertado. Ouvia-se novamente o som ora alegre, ora entristecedor dos instrumentos, enquanto Téo habilmente preparava um chá de folhas de laranjeira trazidas da Lapinha. Gute reabastecia o candeeiro. Eram duas horas da madrugada e programaram para depois do chá, em consenso geral, uma volta córrego abaixo. Que diversão! Tudo na mais perfeita harmonia.
Mas, onde estaria o bendito alicate para tirar a chacolateira do fogo? — Téo queria saber. Estaria decerto por aí; mas onde? Gute e Berro   mobilizavam-se e até dentro da sacola o procura. Dessa sacola, aliás, o mais jovem retirou uns biscoitos para ir com o chá, se é que toda a água fervente, enquanto isso, já não se havia evaporado.
Olha ali, `tou vendo daqui um negócio brilhando ali, parece que é ele. Aí Berros, onde você quase pisou agora! — Disse Tonhão a Berro, com sotaque paulista, usando um plural.
Tonhão foi quem encontrou, enfim, o tal alicate, que se achava quase que totalmente enterrado, sem, para tanto, mover-se do aconchego de sua cama onde permanecia sentado com as pernas embrulhadas.
Téo punha conscienciosamente o açúcar na lata e misturava. Berro   lavou um copo de vidro para retirar a borra de café impregnada. Gute somente usou o dedo para desagregar a sujeira grossa e soprou forte: estava limpa, pois, sua vasilha. E Téo poderia, por obséquio, lavar um copo para Tonhão e servi-lo?
O chá estava excelente e para Gute melhor ainda em uma caneca de esmalte. Aquilo sim era vida, dizia!
Imediatamente após o chá saíram e deparam com a verdade: o cachorro não quis caçar, não se afastou dos cabras. Constataram, com isso, está Tá-Riscado covardemente com medo; não havia nele a vivacidade da noite cedo. Com medo de quê?! Do mato? Do escuro? As suspeitas eram grandes e os olhares iam de um a outro: minutos atrás ao investigar o tal mexido o cachorro deparou-se com a onça, a temível. Para Gute não eram pisadas dela, mas o cão a pressentira nas imediações quando saiu para farejar um bichinho. A certeza, porém, ninguém tinha; a prova insofismável não havia. Somente as evidências não negavam: são vários os casos contados de caçadores que dormem no mato e dizem bastar o fogo baixar para a danada encostar, justamente como se dera.
Sem cachorro não havia caçada e Tá-Riscado estava em um momento atípico; os aventureiros não deviam forçar a barra, mas sim, reconhecer a fraqueza do outro, mesmo sendo este um animal. Sim, porque o cachorro é amigo e depois de, naquele dia, ter escorraçado uma cotia, um veado, ter acuado dois buracos e ter assustado a onça — segundo Tonhão —, tinha mesmo era que descansar. Não adiantava Tonhão estrumar, nem Berro   querer entrar no mato trançado àquela hora feia à espera de que tropeçassem em algum tatu. Para Gute, quem deveria andar pelo mato fechado, por debaixo das tiriricas de três quinas e das cambaúbas era o cachorro. Estaria pronto a fazê-lo somente, é claro, se o bicho acuasse algo. Isto porque quando se tem cachorro bom, o dono senta-se a descansar enquanto seu animal volteia vários hectares. Mas aquele ali não se afastava cinco metros dos homens, mesmo tendo uma picada a seguir. Só podia está com medo! A peste depois de estrumado e vendo que os cabras permaneciam em pé, parados sem avançar, deitou ali mesmo e foi o fim daquela sondagem. Estavam a menos de uma tarefa do barraco. Numa guinada de cento e oitenta graus voltaram ao abrigo. Verificaram se ainda havia algum resto de chá-de-laranja na lata. — Será que ainda tem, Téo? — Gute pergunta.
De volta ao abrigo, o relógio de Tonhão dando duas e meia, chegaram lenha ao fogo. A lenha administrada por Gute desafortunadamente ameaçava a se acabar, já estava na extra. Téo saiu-se fora do teto, pôs a cara para cima e fez uma imitação grotesca de uivo felídeo, aparentando-se mais com o piado do corujão-de-orelhas. O som ecoou mata adentro e foi assustar os grilos nas folhagens, que se abrigaram embaixo de seus cavacos.
A iniciativa de reforçar a lenha foi de Téo, mas Gute não somente o ajudou como fez mais: cortou um pau para alinhar na cabeceira inferior dos ignóbeis leitos, evitando, desta forma, que deslizassem ladeira abaixo. Deslizariam sim, mas ao fazê-lo seus pés tocariam o suporte e assim não correriam o risco de cair dentro do fogo ou do córrego mais além. Berro, inclusive, estava com esse sério problema, porque sua cama era apenas uma rede estendida no chão; uma rede de plástico, lisa igual quiabo. Se é que podia chamar aquilo de rede: um bagaço, trem frágil e curta. Se soubesse que era de criança não teria trazido. Mas estendida no chão ela era a sua cama. Quanto a Gute, esse pelo menos uns galhos forrou no chão para servir de colchão e abrandar a dureza. O caimento do terreno muito incomodava. Eis o porquê de Téo convidar a turma a desfazer a essa hora da madrugada suas camas para desbastar a terra da cabeceira e jogar para os pés. Faltou foi lugar para tanta terra e folhas revolvidas. A situação geral, no entanto, foi amenizada. Berro   agradecia.
Terminada a agitação, uma calmaria totalizava o silêncio na escuridão. Assim, perceberam que caíam uns pingos de chuva, os quais respingavam esporadicamente na face desembrulhada dos cabras ainda a conversarem sobre assuntos diversos, porém já sonolentos novamente. Pelo que tudo indicava não choveria. Uma manta de névoa cobria a baixada. Longe do fogo fazia frio.


VIII


Deitaram-se, então, depois de desmancharem as camas para aplainar mais o terreno. A noite estava sendo sucesso, já tinham um caso para contar: o caso do bicho que se aproximava quando já não havia fogo e a escuridão predominava. Mexida sutil. Na concepção de Tonhão,  a temível, a dona-menina, a gata, a onça. Tão famosa, a bichana tem todos esses nome e apelidos. Gute não achou que fosso a maria-canhota — o tapa ou munhecaço vem da mão esquerda — como temeu Tonhão. Berro   também, mas não descartou a hipótese de ter sido ela: tudo corroborava para as suspeitas do pagodeiro de viola, Tião Carreiro. Mas sabia que onça não anda ciscando, demorando mais de quarenta minutos, como narrou Tonhão,  para atravessar um trecho pequeno e com um barulhinho daquele. Além do mais o que não faltava ali paralelo ao córrego — lembrando que a caça subiu em direção à cabeceira do broto d'água — era carreiro de tatus, trilhas grandes bem verdade, por onde  passavam até caititus. Isso, porém, constitui discussão para muitos dias ou para a vida inteira. O que importava era que agora tinham um caso para contar ao pessoal sobre sua aventura pelo Capão. Assim, podiam voltar a dormir serenamente.
O fogo os aquecia. Duas fogueiras: uma aos pés, outra ao lado. Ao redor desta última, quando ainda cedo do dia, foram instalados, debalde, bancos toscos para `quentarem-se ao fogo quando a noite caísse. A fogueira nasceu e morreu e os assentos não foram inaugurados, talvez por situarem-se mais afastado do barraco, ou por ser o interior do casebre mais confortável, bastando-se com a quentura do fogo mais próximo, o fogo da labuta; ou ainda pelo fato de nesses apoios terem que se sentar com as costas voltadas para o mato escuro, ou, quem sabe, a combinação desses fatores. Por vezes a fumaça infestava o abrigo, sufocando os cabras e tangendo os pernilongos. Ambas as fogueiras do lado aberto. Os outros dois foram fechados com uma falsa parede somente "para a danada errar o pulo". Era o que se dizia, brincando. À tardezinha Tonhão havia, a título de divertimento, dito que o ideal para defender-se dos bichos era abóbora assada. Deitados, colocaria os jerimuns próximos à cabeça dos homens e quando a gata desse o pulo acertaria na fruta e não em suas cabeças. O fruto quente lhe queimaria as mãos. Tonhão só não explicou o que devia ser feito para manter a abóbora quente por tanto tempo.
Cabra bom de prosa, sempre arrancava de sua variada experiência mais um caso. Dava notícias das mulheres solteiras, das descaradas e dos chifrudos. Berro   muito se interessava pelo papo. Sabiam, porém, guardar as virtudes da descrição. Falava também se seus planos de adquirir um violão, comprar um carro e mudar-se de vez para o local do acampamento dos sem-terra. Alguns de seus casos eram engraçados, como um intitulado de "dedo sangrento": um suspense de uma voz ameaçadora de um sujeito ao telefone, onde o cujo se intitulava de Dedo Sangrento e que em cada telefonema indicava sua posição, a qual, segundo contou o Tonhão,  variou desde um país da América Central até o Paraguai, sendo que a pessoa ameaçada, uma senhora, estava em São Paulo no Brasil. No final, a mulher era enfermeira e o sujeito um paciente com um ferimento leve no dedo. Bom, os cabras estavam na Bahia, então o suspense não metia medo. Em vez de terror, uma piada!
Gute não ouviu o desfecho desse caso. Estava encabulado com um outro contado anteriormente: o caso do lobisomem, onde o contador afirma tê-lo visto nas ruas de Cachoeirinha. Em sua narrativa ele voava a meia altura e somente dois cachorros o perseguia fazendo um alvoroço como se fosse mais de dez cães em vez de somente dois. Morcegão foi o termo usado para apelidar a criatura.
Essa característica peculiar de ele voar a meia altura Gute achava interessante, porque outra pessoa que também afirmava ter visto há décadas tal ser lendário assim também o descrevera numa outra ocasião. O cruzamento das informações causou-lhe certa cisma, mas não era uma quinta ou sexta-feira, muito menos de lua cheia, sequer lua havia no céu. Ficou calado, não queria reforçar o caso do historiador Tonhão,  afinal tudo isso são lendas, riquezas do folclore, puro mito. Mais real e ali presente, pensava, estava o candeeiro, figura quase personificada da roça, fonte de luz predestinada a desaparecer frente ao progresso aliado à vulnerável personalidade do interiorano moderno.
Maiorias desses casos contados se deram à noite enquanto preparavam o café e a comida. Téo havia, mesmo atento à cozinha, contado um caso que podia impressionar os demais e a ele mesmo por estarem rodeados pela escuridão absoluta. Eis o caso debulhado: Está um sujeito à beira de uma fogueira deitado numa rede e sozinho dentro de uma floresta. Do nada, aproxima-se uma velhinha, vinda sabe lá Deus de onde, e senta-se também à beira do fogo, encolhe as pernas, põe a cabeça sobre os joelhos, de frio cruza os braços e fica ali. Como desfecho, o cara, pávido, aproxima-se da velha, a empurra dentro da fogueira e abre na lapa do mudo correndo.
Findo o caso, Berro   que se encontrava na rede a certa distância, dela saiu — lembrando-se de levá-la consigo, pois seria sua cama — e adentrou o barraco onde os outros se encontravam.
Era assim que a noite passava: um incrementando a história do outro, dando novas versões, imbuindo-a ainda mais de misticismo.
Tonhão brincou:
— Já pensou se chegasse quatro mulheres aqui, agora?!
Uma tá dispensada — Respondeu Téo, seguido sucessivamente pelos outros.
Tão logo a hipótese surgiu foram dispensadas as mulheres. Gute já havia formulado em sua mente quem seria a moleca, mas não tinha chance para possibilidades reais ali: naqueles confins, um cafundó, uma brenha, de onde sairiam quatro mulheres, senão como fantasmas dissimulando a intenção de os assustarem?
Foram inúmeros os casos e se contar todos os que vieram à cabeça, não se falaria de outra coisa. Por exemplo, famílias inteiras nasceram e morreram ali, mesmo ali. Veem-se ainda hoje, mais à cabeceira, árvores frutíferas pelos antigos moradores plantadas e conservadas pela natureza; somente não produzem mais. No ermo, de repente, podia surgir barulhos estranhos, pratos se quebrando, bebês choramingando no meio do silêncio. O momento era mais que propício para isso. Por sorte não ouviram nada sobrenatural, ou pelo menos não quiseram assim interpretar.
Ouviram sim, naquela madrugada, um urutau; noctívago conhecido regionalmente como o "mãe-da-lua". O cantar desse pássaro é tétrico, e irradia desprezo; um infinito clamor e melancolia. Um apelo de quem luta pelo impossível, de quem reconhece a derrota e apega-se à desesperança; um uivo de quem está cansado e não pode parar a labuta; um salto de um precipício; um choro de arrependimento; um tormento ou uma calamidade sentimental.
Uma metáfora que se assemelha mais a uma ironia: que cansaço poderia ter um pássaro que passa o dia imóvel, dormindo camuflado na ponta de um toco? Em labuta sim estava os aventureiro, embaixo de uma árvore tentando alumiar um vulto que se escondia por detrás de uma casa de cupim. As lanternas mesmo combinadas não davam o êxito. O bicho ficava imóvel; seus olhos não refletiam a luz, mas a cara arredondada e as orelhas — orelhas de onça! — não deixavam dúvidas a Téo que não hesitava em categoricamente afirmar ser a danada. Seria a suçuarana ali no oitão do barraco acuada e sem saída. Quem subestimou o cachorro dava conta agora de sua valentia.
A árvore era incomparável em tamanho num raio de vários metros. Por ser assim tão alta, as lanternas não a clareava perfeitamente, nem mesmo com a claridade do fogo transplantado para o pé de seu tronco. Diz a experiência, uma vez feito um fogo a caça na árvore abrigada não desce. Mas o que dizer dos bichos saltadores capazes de saltar e cair a grandes distâncias ou de galho em galho nem mesmo chegar ao chão? Amanheceriam o dia ali. Tonhão clareou seu relógio no pulso, iam dá quatro horas. Não tardaria o sol a parecer e teriam luz com sobras na copa da árvore e também no chão. Bem uma hora de prontidão e muita atenção.


IX


Voltaram do passeio em que Tá-Riscado mostrara-se preguiçoso por sono ou por medo. Realmente o chá havia se acabado, só restava o cheiro das folhas no fundo da lata. A fogueira ganhava vida, a luz difundia-se e a mata clareava. Insetos atraídos pela claridade suicidavam-se nas chamas. Uma garoa ameaçava a precipitar, mas nada sério. Recostaram. Berro   sacudiu o pandeiro e Tonhão riu. Duas horas e meia da madrugada, daria para tirar uma boa pestana. O pagodeiro dormiu logo, Berro   ainda se mexia, ali desconfortado, na abstinência dos costumes rotineiros: diacho de cama, um porcaria, pensava. Nesse momento a labareda fazia barulho e Gute ouviu por detrás do barraco um pau quebrar. Coisa sutil! Comunicou a Téo, que disse também ter ouvido, mas já sonolento e obnubilado, incapaz de suspeitar, muito menos de tirar conclusões. Para ele, qualquer mexida frívola, uma folha caindo. Ele dizia-se meio caído, então seus pensamentos navegavam por outras esferas.
Gute, o único acordado, tentou captar mais algum barulho suspeito, terminando por adormecer. Em sono leve, acordou logo, por causa de um pernilongo que se enfartava de seu tornozelo — a calça comprida não encobria aquela parte. Neste ínterim, Berro   pede auxílio de Tonhão para atiçarem o fogo:
— Que nada, aí dá para amanhecer o dia! — Respondeu Tonhão,  sonolento, onde cenas do dia anterior, algum pormenor qualquer da caminhada enfadonha, eram reproduzidas em sua mente. Levantar-se e sair-se fora sozinho Berro   é que não iria.
Via-se facilmente ser diversa a experiência dentro do grupo: enquanto que um avaliava o tempo necessário para as brasas reduzirem-se a cinzas, o outro, mais sensato, não queria permitir que o breu tomasse o lugar por razões óbvias antes já comentadas.
Imediatamente ao despertar e coçar-se, Gute se lembra de prestar atenção ao ambiente. A claridade de alguns minutos não mais existia. Um tição em brasas se agasalhava. Ouviu um barulho proveniente dos fundos da casa e já esperava por aquele motivo. O estralo ouvido assim que se aquietaram, e que Téo também ouviu, deixou Gute mais vivo. Agora ficou escutando, imóvel. Sutilmente o bicho avançava; outro menos perspicaz não daria conta. Via-se seu mexido cada vez mais próximo. Gute nem sonhava em dormir naquelas circunstâncias.
Tá-Riscado coçou-se e com isso o cabra acordado percebeu que não estava sozinho. O cachorro encontrava-se a menos de um metro deles, porém pelo lado de fora, ao fundo do barraco onde a cobertura de paus amarrados, de galhos e ramos apoiava-se no chão. A escuridão aumentou e as pisadas maliciosas avançaram mais rapidamente, como se o predador houvesse decidido matar suas curiosidades, ou sua fome, ou somente fazer correr aquele bando de intrusos a perturbar a paz do ambiente com aquele cavaquinho mal tocado, aquele desentoado de vozes e aquele pandeiro de merda. Mas Gute vendo que o cão impor-se-ia resolveu acordar Berro   e Téo. Foi tudo muito rápido. Esses dois ainda puderam ouvir o cachorro rosnar e, dali mesmo latir, e em seguida avançar. Neste exato momento, Tonhão,  cuja coragem até então era discutível, acordou assustado, tomou da sua cartucheira a seus pés dependurada, sendo o primeiro a sair do barraco. O guarda noturno já latia acuado, sacudindo paus e querendo subir na árvore. Esta ficava a alguns metros do barraco, na direção da esquina formada pelas duas paredes, por onde se podia muito bem algo se aproximar sem dar conta das brasas, pois o raio de visão destas era totalmente encoberto pela construção.
Tonhão,  ao sair de dentro do abrigo numa agilidade aparentemente incrível à sua pessoa, fora avisado:
— Tonhão,  não vai não que é alguma coisa que o cachorro quer assustar! Ele rosnou primeiro, antes de latir! — Disse-lhe Gute, antes mesmo de o cachorro acuar. Como se viu, evitava a palavra "onça", substituindo-a por "alguma coisa que o cachorro quer assustar".
O fato de ter Tá-Riscado rosnado antes de latir fez Gute, sujeito de sabe e prudência, concluir que o vira-lata estava com medo e que quisera primeiro, em vez de usar-se de sua malícia para o ataque em surdina, mostrar-se presente.
Mas o impávido Tonhão não ouviu e não deu bolas ao conselho do amigo, e numa atitude francamente leviana — segundo opiniões posteriores — entrou embaixo da árvore. Téo secundando-o, breve também a atingia, cautelosamente, depois de tomar inconsciente a lanterna das mãos de Gute e contornar pelo fundo da construção. — Quede sua lanterna, Téo? — Gute queria saber. Berro   os acompanhou, deixando para Gute a tarefa de, sozinho, atiçar o fogo.
Tonhão se revelou hábil em roçagem: poucos minutos passado e somente os paus mais potentes embaixo da árvore ficaram em pé. Isso, porém, depois de terem voltado à choça e apanhado os facões. Os quatro embaixo da árvore, tentando iluminá-la, mas todos sem facão, arma preciosa, esquecida pela pressa e pelo afobamento. Será que Gute seria capaz de voltar ao abrigo e apanhá-los?
Berro   animava, incansável, talvez por mal ter entrado na casa dos vinte anos, o mais novo da turma e, portanto, com mais espírito de brincadeira. Via os latidos de Tá-Riscado ecoarem na grota funda e estrondarem lindamente no silêncio da madrugada; orgulhava-se de seu animal, muito bom e de tamanha serventia; cachorro bonito e caro: por menos de cem reais não o venderia. Depois dessa, então! Acuando até onça!
Todos atentos, porém. A qualquer momento, de súbito, poderiam ser surpreendidos; estavam susceptíveis a um contra-ataque, suas vidas corriam perigo. Mas já se era possível agora, depois de eliminar algum mato, ver a copa da imensa árvore, sua projeção no céu fechado, a amplitude de seus galhos. Gute não havia notado que se abrigara sob uma árvore daquele porte. Tudo, no entanto, era sem forma, sem definição. Apesar disso, com muita perícia Berro   conseguiu enfocar algo diferente: um vulto inerte que, com a claridade, se esbranquiçava. Téo foi chamado e veio. Gute falou em dá um tiro vagabundo para ver se o suposto bicho se movimentava, tomasse alguma tendência. Esse tiro seria dado com a trinta-e-seis de Tonhão,  a única cartucheira ali e rapidamente recarregável. Reconsiderou, entretanto: seria uma imprudência e ele, Gute, de certa forma o responsável pela integridade física dos componentes da equipe não ira cair na besteira de "cutucar o cão com a vara curta". Sabe-se que a gata quando alvejada reluta até os últimos segundos de vida. Chumbá-la somente para vê-la se mexer seria procurar precipício, uma tolice.
Zoavam à beça, efusivos. Acampamento mais perfeito! Este era o primeiro; quantos mais não viriam?! Juntaram todos clareando, Gute com sua lanterna de bolso, um fogo num facho de candeia reforçando a luz, e nem desta forma decifraram o mistério do bicho, que agora talvez devido à claridade volátil das chamas, parecia se mover. Foi nesse momento que Téo abriu mão de sua reserva e proclamou:
Moço, ali é a cabeça de um bicho: tá coisado por ‘trás duma casa de cupim; o corpo tá escondido, só mostra a cara..., olhe as orelhinhas lá! — Apontou com o dedo e falou com convicção, engolindo a seco, sem respirar, sem perder tempo em anunciar sua acertada descoberta.
Em sua opinião tal bicho seria a onça. Realmente pareceu haver uma casa de cupim, todos a enxergava, mas Gute não conseguiu captar movimento algum. Também era ele, Gute, que cuidava do fogo naquele instante e com as pupilas contraídas ficava mais difícil ver no escuro. Dava, contudo, razões a Téo. Por que não? Não é assim que também agem os gatos-do-mato ao serem encurralados por cachorro? Não se escondem em bifurcações dos galhos, mostrando somente a cabeça, o suficiente para espiar as manobras do adversário? Além do mais, Téo não faria tão séria assertiva se não estivesse completamente certo disso, de que era a suçuarana. Gute olhou Téo, surpreso por sua afirmação, não era muito de errar, mas não compreendia por que somente ele a via claramente. Berro, feliz da vida, dava um tapinha de leve em Gute, chamando-o para a euforia: Tá bom, não tá?! Sorridente, perguntava afirmando positivamente com a cabeça.
Se era na verdade o que se supunha, então deviam redobrar a atenção. Daquela altura, durante o dia, qualquer movimentação para qualquer finalidade daria tempo para uma reação dos cabras; mas era noite. Mesmo assim, era nenhum o receio. Quer fosse onça, quer fosse quati, o tratamento era o mesmo. Berro, animado, preferia que fosse a danada e, graças a Téo, que tinha visão noturna, a predileção do jovem estava satisfeita. Só Tonhão necessitava ver para crer. Sua visão já não permitia ver muito além numa noite sem lua e nublada; além do mais, o Gute, como ele dizia acrescentando o sotaque sulista, ainda não havia batido e martelo e concordado plenamente com as suspeitas do Téo. Cético, não queria permanecer ali, literalmente de cara para cima; sua garganta já estava seca e o dorso doía. Assim, moído e estropiado da jornada do dia anterior, queria continuar seu sono interrompido pelos latidos do cachorro. Se Téo estivesse certo, o abrigo, inclusive, lhe daria mais proteção.
A questão agora era: por que os olhos não refletiam a luz das lanternas? Que laia de bicho seria esse? Interrogavam-se. Pensando por essa faceta, desanimavam. Teria Tá-Riscado acuado de novo à toa? Nessa incerteza, sentaram-se de sentinela ao pé do tronco à beira da nova fogueira à espera do sol e de sua luz. Cantava um urutau no vale e Gute com o chamador de zabelê o imitava com precisão para desespero do pássaro.
Berro   e Tonhão recuaram-se ao barraco. Gute permaneceu ali sentado. Téo deitou por ali nas folhagens, aproveitando a claridade, desalojando tudo e todos, espatifando os tições. Em fração de segundos ressonava: cabra bom de a onça pegar, Gute pensava. Este rearrumou os tições, deu outra olhada para cima, checou as coordenadas do cachorro e, de olhos acesos, esperou clarear. Se por um lado o sol custasse a penetrar a grota funda, por outro queriam somente que esse clareasse a copa da árvore, que por sorte se destacava das demais.


X


Rompeu a aurora e o amanhecer não foi tão espetacular. A casa de cupim que protegia o corpo do animal acuado instalada no alto dissipava-se com a claridade: simplesmente não existia ou jamais existiu. A cara arredondada da onça com suas orelhas, tampouco. Mas, e quanto ao barulho, a se aproximar pelo fundo do barraco, tendo recuado tão logo ter o cachorro rosnado, latido e avançado? Onde o bicho se meteu? E o cachorro agindo daquela forma, mordendo e sacudindo varas, querendo subir em árvores, desejado profundamente tais habilidades? Teria o cão os ludibriado novamente? Eram muitas as dúvidas.
Berro, na qualidade de dono do Tá-Riscado, sentia uma certa culpa, desnecessária, por todos esses fracassos. Não se importava, no entanto, quando diziam que o infeliz não caçava nada; era o primeiro a afirmar a apoiar-lhes. O miserável não tinha ânsia nem para ir ao córrego beber água: na madrugada Téo lhe dera água e o condenado bebera que só.


Estas e outras questões, as relativas ao caso em que o cachorro perseguiu o tatu e retornou imediatamente e com medo, e as mais recentes, haveriam de ser desnudadas quando chegassem a Cachoeirinha e consultasse os mais experientes, quando já houvesse tomado um café coado — no mato ao café não se côa — , quando consultasse o velho apelidado de Ô, para quem a diferença entre dia e noite era somente a presença ou ausência de luz.
Naquela plácida manhã de sol, em que a brisa sacudia as folhas das árvores, predominavam as olheiras de uma noite mal dormida. Deram uma volta por ali, um a um, vez a vez. Berro, debalde, foi mais longe, numa longa caminhada. Quando se reencontraram no posto de suprimentos juntaram tudo que ainda restava de alimento a preparar; iam embora dali a pouco, podiam queimar o estoque. Tonhão retirava carne da sacola; o cachorro suspirava fundo. A água fervia para um macarrão instantâneo, enquanto Tonhão e Berro   liam literatura de cordel, histórias de Lampião e Maria Bonita. Ao abrir o pacote do produto, porém, Tonhão constatou tratar-se de condimentos, pacotes de temperos e não de macarrão.
— Olhe, vou falar para o cara da venda não botar o tempero de junto do miojo. — disse o pagodeiro, contrariado, apesar de ter dito antes não querer participar daquela comida.
A água quente serviria para lavar algum alimento. Palpite de Téo. Já os pratos rasos a lavagem era a seco, não por falta de água ou de higiene, mas sim pela dificuldade de lavá-los sem sabão ou detergente. Para o próximo acampamento seria de grande utilidade um pedaço de sabão, disseram. Gute e Berro   assavam peixe salgado na maior diligência; o aroma desprendia-se das brasas e infestava o ambiente. Gute abandonou a tarefa em favor do cavaquinho. Na barriga de Téo zoava uma tripa. Tá-Riscado espiava, discretamente. Este, muito cabreiro frente a tanto olhar de indagação, se perguntava o porquê de os cabras não terem arrancado o tatu do buraco na noite passada. Por vezes olhava a capanga no teto dependurada, mas não via nenhum volume digno de uma caça; pelejava para compreender.
Gute, esforçando-se para não ri do fora que dera Tonhão no caso do miojo, sentiu um fervilhamento na panturrilha, largou o cavaquinho e com trabalho embolou a perna da calça para alcançar o carrapato. Era dos grandes e apressadamente avançava em direção às coisas. Pegou a praga e soltou-a dentro do fogo para vê-la pipocar. — Toma miserável! — Disse. Berro   admirava-se com o estrondo a levantar cinzas.
A água de beber já era a do córrego, e Téo mais uma vez inventava arte: levantava a camisa, punha-a na boca formando um filtro e enfiava água goela abaixo. Exagero! Não precisava tanto. Bastava não reparar a composição de folhas podres e pernas de aranha e beber-se-ia tranquilamente.
Agora era a hora de derrubar o barraco, mas muito ao contrário do que se pensava, cortados os cipós a construção não ruiu facilmente. No fim, as folhas já se haviam murchado e através do teto já se podia ver o azul do céu. Estavam, a essa altura, acostumados com a ideia de desmanchá-lo, não mais sentiam grande pesar. Relutava, no entanto, em ceder: foi derreando para um lado, enganchando acolá e se estabilizando. Lá se ia mais facãozada em um elo estratégico e o colapso progredia. Tonhão,  já na boca do caminho para casa, olhava comovido. Berro   observava Gute na tarefa e dava palpites; no fundo, todos emocionados. Estava terminada a história do casebre. Do primeiro cipó amarrado até seu tombo foram cerca de vinte e quatro horas: um dia de diversão e aventura, O sentimento era também de vitória, de uma conquista desde há muito planejada e falada.


XI


O ambiente foi de toda forma influenciado pelos visitantes: avivaram-se as picadas de acesso, rastros humanos foram deixados na lama da beira do lameiro; paus cortados tinham suas folhas amarelando; casas de cupim foram destroçadas; o chão do barraco fora cavado, formigas se desviaram de seus cursos normais e juritis em seus voos rasantes serviam-se de improvisos ao deparar com aquela estranha ocupação. Tivemos mais: cacos de vidro, chacolateiras e sacolas plásticas foram ali abandonadas. Onças tiveram que dormir de ouvidos atentos após latidos de cachorro; muriçocas eram surpreendidas por rajadas de fumaça, maribondos foram perturbados e quase desarranchados. Uma cobra coral foi aprisionada em seu buraco e, diz a lenda, não deve ter morrido. Conta o folclore que uma cobra depois de enterrada viva não morre de fome, mas se definha atingindo dimensão comparada a fio de cabelo, à espera de que consiga, um dia, se libertar e se vingar do malfeitor que lhe impusera esse dissabor. Ciente disso ou não, Téo a enterrara quando, ao afastar-se acanhado do grupo, a vira ali, insinuando-se pelas folhagens secas do chão, aparentemente indefesa, e ele acostumado a lidar com cascavéis, enquanto de cócoras fitava a bichinha para não perdê-la de vista, já que ele próprio poderia vir a ser sua vítima. Mas, desconfiada, a coral entrou num buraco e Téo, com o calcanhar, sem quê nem porquê, pilou até não mais poder. Se ela se libertaria para se vingar um dia, naquele lugar longínquo e esconso, a Téo pouco interessava.
Mais marcas ou interferências no ambiente? Não seria incorreto dizer que a bicharada soubera aproveitar os sons das serestas, de um cavaquinho maneiro. Seu hábitat recobrira-se de importância, bastava perceber a presença de Tonhão,  dos mais famosos e populares em Cachoeirinha e vizinhança.
Tonhão,  abatido, olhava sério para o além. Imaginava o trajeto de volta. Lembrava também das vantagens de está leve a bagagem e ser o caminho praticamente só descida. Esse último pensamento amenizava as amargas lembranças da caminhada a o esperar e o confortava. Horas antes quiseram esvaziar um cartucho: uma batida, duas, três e..., nada. Mesmo na enésima tentativa a trinta-e-seis não detonara. Podia ter necessitado dela quando entrou pioneiro com a arma metida embaixo da árvore onde supostamente havia um bicho cujas suspeitas iniciais iam para um dos mais ferozes. Certamente seu brinquedo não funcionaria e, tendo o incauto se esquecido de apanhar o facão — ninguém se lembrou —, enfrentaria a onça no mano-a-mano. Era realmente um "cabra doido do Sertão".
No caminho para casa Téo pode conhecer o teiú, filhote ainda, contudo, representando bem a espécie.
Ao saltar à estada onde a cerca encerra num mata-burro para depois continuar em direção ao rio, as disposições foram as seguintes: Gute caminhou rodagem acima para checar o estado de uma armadilha; Berro   e Tonhão esparramaram-se exaustos no chão; e Téo foi vasculhar os pés de jaca. Para ele aquela jaqueira enorme era de assombrar; como não devia ser então, a do Riachãozinho de Lençóis da qual Gute lhe havia falado? Era, na verdade, seduzido pelo clima e pela fertilidade daquele lugar, da Lapinha, pois em pleno verão severo a paisagem apresentava-se verde e fascinante. Verde de vários tons, embelezado com vermelho e amarelo das folhas novas das árvores caducas. O paredão ornamentado merecia uma foto, pensava.
Minutos depois Gute voltou ostentando seu troféu e já ouvira tombo de jaca derrubada. Apossou-se da prosa entre os dois do chão enquanto arrancava os sapatos ressecados do barro e que mordiam seus calcanhares. Téo tossiu de leve limpando a garganta e anunciando que chegava. Apareceu corcunda do peso de duas jacas estupendas dependuradas pelo talo. Gute e Berro   viram-nas e já dizia de qual pé foram colhidas. Da pior jaqueira que se têm notícias em toda a Lapinha. Dá jacas moles grandes, e bonitas, bem verdade, algumas exageram em tamanho que é sofrimento conduzi-las. Téo que o diga! É do tipo de jaca que amadurece e não muda de cor, nem por fora nem por dentro. Brancos, os favos além de não terem o mel cheiroso são duros e custam a soltarem-se do miolo da fruta. Não adianta quebrar graveto, tem que meter a mão para melar-se de visgo. Téo não sabia disso e a comeria de qualquer jeito.
Abra a jaca homem — Gute pilheriava.
— Colé nada, rapaz. Basta uma: quem vai comer esse mundão de coisa? — Téo retrucava.
Para ele, abrir duas jacas daquele tamanho seria um desperdício absurdo. Estivesse de bicicleta e morasse perto jogá-la-ia na garupa com certeza.
Pela vontade de Berro   a segunda jaca também seria aberta, porque a primeira estava daquele jeito: parecia murcha e não madura. Talvez a segunda estivesse melhor.
Deixa ela aí, daqui a pouco passa um peão ai a mata a fome. Falou Tonhão,  tirando as palavras da boca de Téo.
Eis o porquê de a melhor jaca, a digna do nome, ter ficado à margem da estrada para raposas e passarinhos. A árvore de vez em quando capricha numa jaca e a dita esquecida propositadamente, soube-se, estava no mel! Foi o que disse Ô, que a saboreando no dia seguinte não conseguia associá-la ao pé de onde viera. Com certeza não era daquele encostado no gravatá, o que dá jacas grandes e ruins.
 Já na Lapinha, mas dessa vez de volta para casa, uma pausa para descanso, e um chá de capim-santo. O mestre de cozinha desta vez foi Tonhão. Berro   e Téo tomaram banho de rio. Durante o chá improvisaram repente ao ritmo de uma batucada. Tonhão começava uma quadra, como quem ia deslanchar, mas empacava no terceiro verso. Por uma vez não mencionava a palavra "sem-terra". Somente o sol estava mais quente do que a bebida e esse seria enfrentado tão breve esvaziassem a lata. Berro, dando um balanço nos acontecimentos, desejava está em casa; queria encerrar o quanto antes esta jornada, que em termo de caçada tinha sido um fiasco. Com as pernas cansadas e sentado no beiço do forno de torrar farinha, olhava pensativo para o teto. Escorria água pelo calção molhado do banho. Sentia frio na sombra em uma tarde de muito sol. Também via, a exemplo de Tonhão,  a estrada a sua frente, cada marco aproximando e a transpor: a ladeira da casa-velha, o viveiro, a caixinha de Beto, os fornos de queima de carvão, a reta plana para chegar ao pau-d'óleo, mais fornos, a cancela preta e, por fim, o rio no beco de Betim. Só então estaria em casa: uma hora de caminhada. Isso se Tonhão aguentasse o ritmo! Já, Téo, coitado, ainda ia pedalar para Wagner.
O sol queimava naquela tarde e precisavam cumprir a missão, mostrarem-se em casa sãos e salvos.


XII


Opinião unânime dos caçadores mais experientes de Cachoeirinha inteirados dos fatos que os permitiram elucidar sobre a natureza do bicho — fogo baixo, pisadas sutis, cachorro escabreado — puseram as dúvidas por terra: o cachorro acovardara-se ao pressentir a onça. Acuara a árvore solitária porque a bichana havia ensaiado com as mãos subir em seu tronco. Quando o cachorro, mesmo tímido, deu testa, a gata, sorrateira e crapulosa, habilmente evadira-se e, precipitado nas evidências, o cão crera está a fulana em cima da árvore. Essa conclusão agradava aos cabras, pois fazia jus aos momentos de apuros no mato.
Nos dias subsequentes não se falou em outra coisa em Cachoeirinha. Onde havia gente responsável prosando, e também aqueles meninotes que querem ser homens, o assunto era comentado. Os meninos de Ô viram a onça no Capão, dizia um fulano. Um sicrano já acrescentava novo ato, torcendo a verdade, e beltrano contava um caso semelhante após um trago no café. O próprio Tonhão diria, em afirmação dias depois, que a danada da onça lhe teria jogado um punhado de terra.
— Ah! Aí eu vi me jogou terra! — relatou Tonhão,  com certeza plágio de causos já ouvidos naquela semana.
E assim foi a história do acampamento. O primeiro dos Cabras Doidos do Sertão, ou melhor, Cabras Doidos da Chapada. Já está sendo bolado um outro "Orelha de Onça" para as próximas férias, com licor de jenipapo, mais folia e mais diversão; dessa vez em um lugar mais remoto, com mais perigo e, portanto, mais entretenimento. Neste momento o mãe-da-lua sonha com suas presenças, com o "Pagode em Brasília", "O Seresteiro das Noites" e aquele cavaquinho alegre. Por ora, o que domina é seu clamor macabro, numa insônia eterna. FIM




RTC, Bahia 2007



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